Ela desatinou, viu chegar quarta-feira
Acabar brincadeira, bandeiras se desmanchando
E ela inda está sambando
Ela desatinou, viu morrer alegrias, rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando e ela inda está sambando
Ela não vê que toda gente, já está sofrendo normalmente
Toda a cidade anda esquecida, da falsa vida, da avenida
Onde Ela desatinou...
Ela desatinou (Chico Buarque)
Ela desatinou (Chico Buarque)
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Chico Buarque de Holanda compôs, no início da sua carreira, a música “Ela desatinou”. Nesta linda canção ele narra os desvarios de uma personagem que, apesar do término do carnaval, na quarta-feira de cinzas, continuou psicologicamente envolta nos encantos da festa e não parou de sambar.
Para o poeta a personagem desatinou porque se comportou instintivamente e ignorou o que a razão prescrevera: o fim da festa, o recolhimento das bandeiras e o perecimento da alegria. Ela desatinou porque se comportou em desacordo com os valores e ideais do seu tempo, vivendo, para além do permitido, uma “efêmera ilusão”. Ela desatinou porque não submeteu aos ditames da razão os prazeres da carne.
Nesta música, Chico retrata, com agudeza de espírito, paradoxalmente, o imaginário do homem moderno. Um ser extremamente racional, equilibrado, comedido e ponderado. Capaz de se conter o ano inteiro, com prejuízo do próprio bem estar, e deixar os instintos fluírem apenas nos quatro dias destinados à festa pagã. Qualquer coisa, além disso, é desvario e insensatez.
Chico faz uma crítica sutil e inteligente ao racionalismo exacerbado que contaminou a cultura ocidental, desde o surgimento de Sócrates, no séc V a.C. Nesse período, a Grécia Antiga vivia sob a tutela do deus Dionísio, em total sintonia com os instintos humanos. Não havia a preponderância do pensamento sobre os desejos. O imaginário grego estava alinhado com a representação do guerreiro forte e belo, capaz dos atos mais insanos de coragem e heroísmo.
Sócrates é o primeiro a introduzir no ocidente a idéia de limitação do corpo, de autocontrole e autonomia. No lugar do combate aos inimigos externos, o filósofo propõe a luta interior, cuja vitória se expressa pela supremacia do pensamento sobre o sentimento, dando ensejo à noção de autarquia. Com ele os gregos escolarizados começam a se identificar com as noções de harmonia, proporção, equilíbrio e moderação.
É nesse mundo caracterizado pela falta de limites que o velho filósofo surge para, contra tudo e todos, propor, como um louco revolucionário, o combate aos instintos.
Se a personagem do Chico vivesse na época de Sócrates, certamente não seria considerada insana, pois estaria vivendo na mais perfeita harmonia com o imaginário grego. Hoje, depois do transcurso de mais de 25 séculos, vivemos em consonância com o ideal da disciplina e limitação do corpo. Até para comer e beber somos parcimoniosos. Os únicos momentos que nos são permitidos “DESATINAR” são os quatro dias de carnaval, que, como uma “válvula de escape” das limitações que impomos a nós mesmos, nos alivia das amarras vorazes da razão.
Nesse contexto, não é difícil compreender porque somos seres estressados, ansiosos e “engessados” para a prática dos atos mais simples da vida cotidiana. Hoje, privilegiamos o pensamento à ação, o individual ao coletivo, o subjetivo ao objetivo e a alma ao corpo. Essa mudança psicológica operada ao longo dos séculos foi necessária e irreversível, mas podemos, pelo menos, investigar e compreender as suas causas para limitarmos o impacto dos seus perniciosos efeitos.
A rigor, penso que Chico Buarque, com a sua canção, nos adverte dos perigos do exacerbado racionalismo que, hoje, nos caracteriza. O poeta usa uma hipotética e apixonada personagem para nos dizer: "NÓS DESATINAMOS".
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