sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Os “piratas” do conhecimento (ou “O controle da produção intelectual”)

A Declaração dos Direitos Humanos e a Constituição Federal estabelecem que todos têm direito à cultura e ao lazer em sua comunidade. No entanto, apenas 13% dos brasileiros freqüentam cinema; 92% dos brasileiros nunca entraram em um museu; 93,4% jamais freqüentaram alguma exposição de arte; e cerca de 80% nunca assistiram a um espetáculo de dança. Além da necessária democratização do acesso aos bens e equipamentos culturais, é preciso também reconhecer e valorizar as múltiplas expressões culturais populares.
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A palavra “pirataria” nos remete a práticas malévolas, normalmente desenvolvidas por saqueadores dos mares e outros mal feitores. O pirata é um fora da lei, cruel e sanguinário. Desde criança internalizamos a imagem do nefasto Capitão Gancho perseguindo o bondoso e angelical Peter Pan. Não é sem razão, portanto, que rechaçamos qualquer ação que possa ser adjetivada como tal.
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Por outro lado, o legislador brasileiro tornou crime a prática da “pirataria”, considerada em termos legais como “violação de direito autoral”. O artigo 184 do Código Penal Brasileiro e a Lei nº 9.610/98 tratam da matéria.
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A mídia, por sua vez, cumpre o seu papel ideológico alardeando aos quatro ventos que a “pirataria” produz graves prejuízos econômicos ao país. Argumentam que a compra das cópias “piratas” implica, proporcionalmente, na redução da venda das “originais”, como se o sujeito que compra aquela fosse necessariamente comprar esta. O Direito e a Economia fundamentam essas posições, mesmo quando não há comprovação fática de tais argumentos.
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Sem deixar de atribuir certa razão a esses entendimentos, seguirei aqui outro caminho. Não para fazer uma mera apologia da “pirataria”, mas para desmistificar aquilo que só é um mal quando sofre a manipulação humana. O bem e o mal – que me desculpem os cristãos – são produtos das ações humanas, que, a rigor, não são ingênuas.
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Priorizarei neste artigo a abordagem histórica, não por simples razões metodológicas, mas por julgá-la mais apropriada ao objeto em exame. Utilizarei dois exemplos que me parecem emblemáticos e adequados aos meus propósitos: A Reforma Protestante e a “Descoberta” do Brasil.
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O alemão Martinho Lutero (1483 – 1546), monge agostiniano com rara capacidade intelectual, traduziu a Bíblia e permitiu que milhares de pessoas tivessem acesso ao texto sagrado e, de quebra, publicou um pequeno catecismo para que os pais pudessem ensinar aos seus filhos as bases da fé cristã. Como não encontrou acolhida para suas idéias, foi excomungado pela Igreja Católica em 1521.
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Lutero, à revelia do poder papal, “pirateou” a Bíblia e permitiu que os menos educados a lessem, dando ensejo a uma verdadeira revolução na Igreja do seu tempo.
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O que fez Lutero ao traduzir a bíblia do latim para o alemão? Quebrou o monopólio de interpretação das Sagradas Escrituras, concentrado nas mãos da Igreja Católica. Para os integrantes da Igreja, Lutero foi um pernicioso “pirata”; para as pessoas comuns do seu tempo, um “Robin Hood” capaz de tirar do interior dos muros dos mosteiros o controle do saber religioso, distribuindo-o aos pobres e permitindo-lhes um contato direto com a Bíblia. Se não fossem as ações desse “pirata” renascentista, os ocidentais poderiam ter ficado por bem mais tempo sob a tutela de um poder religioso corrupto, pagando indulgências e outras barbaridades para “entrarem no reino dos céus”.
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Já Pedro Álvares Cabral e seus prosélitos, indo para as Índias, “erraram” o caminho e chegaram à costa brasileira. Aportou com várias caravelas e, amistosos, vieram dar boas vindas aos “selvagens” da America do Sul.
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Depois de nos parabenizar pelas belezas naturais, deu-nos alguns espelhos, creme de barbear e desodorante aerosol em troca do nosso “PAU”. Percebendo a nossa assaz ingenuidade, atravessaram os mares e se localizaram em solo brasileiro para melhor nos “piratearem”. Ensinaram-nos a ser civilizados e, em troca, levaram a nossa cana de açúcar, ouro, prata e outras coisas de pouca significância.
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Ficamos tão gratos aos gentis “piratas” que os louvamos em nossos livros didáticos como nossos descobridores. Se não tivessem nos “descoberto” ainda estaríamos “cobertos” ou jamais teríamos “sido”. Surrupiaram nossas riquezas naturais sem qualquer pudor e ainda os adoramos. Nomeamos ruas, praças e outros logradouros com os nomes dos nossos heróis portugueses: “Pedro Álvares Cabral”, “D. Pedro I”, “D. João”, “Princesa Isabel” e outros. No ano de 2000 comemoramos cinco séculos de “descobrimento”, como se não estivéssemos aqui antes de 1500.
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O “pirata” Lutero prestou um inestimável serviço à humanidade, mas a elite do seu tempo o execrou. Foi, inclusive, excomungado pela Igreja. Ao revés, os “piratas” portugueses que nos exploraram durante séculos, ainda hoje são louvados como grandes homens (e mulheres) da história do nosso país. Isso mostra que o “pirata” não passa de um conceito construído e manipulado pelas elites letradas das sociedades humanas. O discurso sempre construiu heróis e vilões ao sabor de quem os produz.
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Hoje, quem copia um CD, DVD ou um livro sem o consentimento do proprietário do direito autoral é um “PIRATA”. Não apenas os juristas e economistas entendem dessa maneira, mas a população em geral. Mesmo quem consome esses produtos internaliza a idéia de que tal prática é ilegal, ilegítima e imoral.
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Se nos limitarmos a examinar esse fenômeno a partir das ações praticadas, não teremos dificuldade em determinar quem são os mal feitores. Mas se levarmos em consideração as conseqüências dessas ações, certamente chegaremos a outros resultados e poderemos identificar bandidos bem mais perniciosos que estes.
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A ação de “piratear” nos remete a tomada violenta de um objeto que está em poder do seu legítimo proprietário. As conseqüências dessa prática, por sua vez, indicam que a vítima foi privada do usufruto de algo que lhe deveria servir. Em ambos os casos, o direito de uso de um bem ou serviço é usurpado.
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Partindo dessas premissas, examinemos a maneira como os produtos da cultura são apropriados e utilizados em nossa sociedade. Alguém que comercialize uma cópia não autorizada de um DVD por dois reais e cinqüenta centavos, gerando lucro para toda a cadeia produtiva, é considerado um maledicente“pirata”, enquanto o "original" correspondente pode ser comercializado, em média, por cinqüenta reais que o ato é considerado legal e benéfico a todos.
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A lei protege a propriedade intelectual com eficiência, inclusive criminalizando a conduta, mas não assegura aos cidadãos, em especial aos menos favorecidos social e economicamente, o acesso aos mesmos produtos. O nosso Estado "Democrático de Direito" permite a apenas alguns cidadãos o usufruto dos bens culturais, sob o insólito argumento da observância às normas civis. Afinal, que Estado é este que, em tese, assegura a todos o acesso aos bens intelectuais e materiais, mas, na prática, não o faz?
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No Brasil o "grosso" da população intelectualmente ativa pouco freqüenta os espaços culturais (teatro, cinema, museus, etc.) que, a rigor, deveriam ser de fácil acesso a todos os cidadãos, enquanto instrumentos valiosos para a excelência nas ações da vida pública e privada. Em outras palavras: como justificar racionalmente a privação à cultura, numa sociedade que tem como princípio maior a igualdade e o equilíbrio no usufruto dos bens e serviços?
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A resposta é simples. O Estado também é um produto da cultura – enquanto criação humana – logo, se presta a atender interesses de quem o controla. Dentre os principais interesses estão a dominação e o controle sobre os outros membros da espécie. O discurso que proclama a igualdade, fraternidade, bem geral, etc. é lacunar e não corresponde a realidade dos fatos. O Estado nunca esteve a serviço de todos. Na prática, a elite manipula o poder estatal e o canaliza para atender os seus intresses, sonegando dos legítimos proprietários o que, em tese, lhes pertence. Eis que, pelas consequências das ações, também se configura um caso típico, mas sutil, de “pirataria”. Um ato sorrateiro que desvia o produto antes de chegar ao domínio do legítimo usuário. E sendo este bem a produção intelectual, mais perniciosa e ilegal é a conduta, pois priva o homem comum de aprimorar o pensamento abstrato, dificultando-lhe a compreensão dos mecanismos da sua própria existência. Neste caso a CONSCIÊNCIA é o objeto da “pirataria”.
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Por isso, não tenho dúvida que certas ações consideradas “piratas” pelo discurso oficial – como as "praticadas" por Lutero – podem ser benfazejas quando levam a informação e o conhecimento àqueles que, de outra forma, e pelas “vias legais”, jamais os teriam. Ou seja, quando leva os produtos da cultura aos destinatários sem discriminá-los.
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A criação intelectual não pode ser um mero produto econômico e político destinado a atender interesses específicos, mas, antes, deve servir a toda coletividade. A obra que não está a serviço do todo não deve ser considerada como cultural, porque não contribui para o aprimoramento do que determina a dignidade da pessoa humana: o pensamento racional. Quando este objetivo se sobrepõe à obra, ela se torna um OBJETO de outra natureza, pois transvestiu-se em uma coisa econômica, política, etc., e pode ser utilizada como aprouver aos seus algozes para satisfazer aos seus próprios interesses.
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Mas, como na Idade Média - onde o monopólio da cultura estava sob o controle da Igreja -, o homem moderno subverte as produções intelectuais para beneficiar a si próprio. Apesar de alardear avanços na forma de viver em sociedade, continua utilizando o poder que as idéias possuem como instrumento de subjugação dos seus semelhantes. Por isso não lhes interessa socializar os frutos do conhecimento humano (Ciência, arte e filosofia).
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O certo é que uma sociedade propriamente humana ainda é uma quimera (e talvez sempre o seja), onde os bens materiais e intelectuais sejam igualmente partilhados. O discurso se encarrega de ocultar as diferenças, adjetivando certas ações, criminalizando-as ou consentindo-as segundo os interesses de quem detém o poder político. Diferentemente do que se pensa a produção intelectual nunca esteve a serviço da liberdade humana, apenas produziu outras formas de dominação.
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Moral da história: Enquanto os cidadãos comuns pirateiam CDs e DVDs, os "inquilinos do poder" pirateiam o pensamento, o sentimento e até a esperança destes.

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