MOLAMBO (Jaime Florence/Augusto Mesquita)
"Eu sei que vocês vão dizer
Que era tudo mentira, que não pode ser
Que depois de tudo o que ela me fez
Eu jamais deveria aceitá-la outra vez
Pensei que assim procedendo
Me exponho ao desprezo de todos vocês
Lamento, mas fiquem sabendo
Que ela voltou e comigo ficou
Ficou pra matar a saudade
A tremenda saudade que não me deixou
Que não me deu sossego um momento sequer
Desde o dia em que ela me abandonou
Ficou pra impedir que a loucura
Fizesse de mim um molambo qualquer
Ficou desta vez para sempre
Se Deus quiser..."
Que era tudo mentira, que não pode ser
Que depois de tudo o que ela me fez
Eu jamais deveria aceitá-la outra vez
Pensei que assim procedendo
Me exponho ao desprezo de todos vocês
Lamento, mas fiquem sabendo
Que ela voltou e comigo ficou
Ficou pra matar a saudade
A tremenda saudade que não me deixou
Que não me deu sossego um momento sequer
Desde o dia em que ela me abandonou
Ficou pra impedir que a loucura
Fizesse de mim um molambo qualquer
Ficou desta vez para sempre
Se Deus quiser..."
Composta em 1953, “Molambo” é um clássico da MPB. Cauby Peixoto, Ney Matogrosso, Elizeth Cardoso, Maria Betânia, dentre outros, a interpretaram. Os autores – Jaime Florence e Augusto Mesquita – sintetizaram, com esta música, as questões fundamentais da ética no mundo ocidental. Devemos, como seres morais, nos filiar aos preceitos absolutos e “verdadeiros” de uma ética essencialista e metafísica; ou, ao revés, regular a nossa conduta por princípios que fortaleçam a nossa existência como seres individuais e sensíveis?
Não há dúvida que a nossa cultura privilegiou o modelo ético de inspiração metafísica. Esta ética - que tem como grandes representantes Aristóteles, Kant, etc. – é baseada na noção de verdade. Existe um comportamento ideal, por isso verdadeiro, inferido pela razão que se impõe como imperativo ao sujeito. O pensamento constrói o sujeito moral.
Desde os verdes anos somos introduzidos no mundo moral por uma educação que nos “ensina” o que é o bem e o mal; o justo e o injusto; o certo e o errado, etc., como noções absolutas. Uma vez internalizados esses preceitos funcionam como dogmas. Não conseguimos desobedecê-los impunemente. A expressão do nosso ser (pensamento, ação, valorização e sentimento) inexoravelmente se vincula a esse corpo moral pré-concebido. A nossa conduta se forma como resultado de um perfeito ajustamento a essas normas.
No ocidente, a difusão desse modelo ético não se deve apenas aos filósofos, mas à Igreja Cristã que o propagou com o apoio do Império Romano. A religião conseguiu aquilo que era (e ainda é) improvável para a filosofia: chegar às camadas mais humildes da sociedade. Institui-se assim uma moral onde o ideal de conduta está fora do sujeito que age. A ação deve seguir os cânones postos por Deus ou pela razão humana. Essas instâncias normatizadoras instituem o ideal de comportamento humano.
“Molambo” descreve com maestria – só os artistas são capazes – a dificuldade que temos para nos libertar dos valores supra-humanos. Esta música foi feita numa época (década de 50 do séc. passado) em que era inimaginável o homem deixar de lado a honra e o orgulho para perdoar um ato de infidelidade feminina. Ainda hoje esse procedimento não é comum. O peso de ser “corno manso” não é algo digerível para qualquer mortal.
Mas, por trás das idéias que nos prendem e nos petrificam ante a vida está o sujeito, com os seus desejos e inquietações. Na música, a personagem – eu lírico - supera as amarras da cultura e, contra tudo e todos, aceita de volta a mulher amada que, por motivo desconhecido, cometeu algum deslize. Ele a perdoou para satisfazer uma necessidade “vital“. Essa conduta, para muitos, o torna fraco e desprezível por estar atrelada às paixões e apelos do corpo.
Ora, se não nos deixarmos contaminar por essa maneira de pensar o fenômeno moral, podemos – nos apoiando em filósofos como Maquiavel e Nietzsche – dizer que o “eu lírico” da canção não agiu com fraqueza e inferioridade, mas, rigorosamente, o contrário. Ele procedeu com liberdade. Livre dos conceitos que, sem permissão, se impõe como inquestionáveis.
Nós, ao revés, sofremos calados. Quantas vezes tivemos a vontade de voltar atrás de uma decisão, mas, para não parecermos fracos ante os valores que julgamos superiores, não o fazemos? As idéias e os valores se impõem a nós. Agarramos-nos a eles para justificar as nossas impossibilidades. Ignoramos o que nos apraz enquanto seres sensíveis e individuais para louvarmos meras abstrações. Enquanto isso os nossos desejos, pulsões e inclinações ficam em segundo plano. A moral metafísica nos torna fraco com relação a nós mesmos.
Para a personagem da música o desejo de superar a malfazeja saudade justificou as suas ações, mesmo exposto a toda sorte de críticas. Os valores não o determinaram, mas a vontade de viver uma nova paixão... uma nova experiência (“enquanto Deus quiser...”).
Afinal, quem, de fato, é o verdadeiro molambo. A personagem da música que supera os condicionamentos que a cultura lhe impõe e, simplesmente, vive; ou nós que nos privamos da vida em razão de valores metafísicos?
Digo apenas que a moral é um artifício humano, destinado a atender um propósito eminentemente humano. Quando nos faz empacar e negar a vida, ela nega a si própria e nos desumaniza. Não sei se os compositores, ao criarem a obra, pensaram nessa possibilidade de interpretação, mas acho que concordariam: molambos somos nós!
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