terça-feira, 14 de junho de 2011

Nietzsche e o sexo oral (Ou "Como confortar um espírito puro")


Ressentimento (Walber Wolgrand)

Quando uma mulher diz que os homens,
Por se comportarem de certa maneira, “não prestam”,
Se referindo à infidelidade conjugal ou afetiva,
O faz como expressão da flagrante tentativa de esconder
Atrás do fantasma moral as suas frustrações,
Recalques, submissões, limitações diversas, etc.,
Sentindo-se, ao revés, diferente desses seres
Que, por sua natureza, são "condenáveis" e "dignos de piedade".
Denegrimos o outro para nos sentir superiores
Ou para esconder as nossas impossibilidades.
...................................................

Ganhou publicidade incomum o caso da adolescente que praticou sexo oral no interior do banheiro de uma escola pública estadual. O vídeo gravado bateu recordes de acesso na internet. A mídia marajoara não perdeu a viagem: explorou o assunto como pôde (ver matéria de capa do jornal “O Liberal” de 01 de novembro de 2009).

Esse fato me fez lembrar um acontecimento que se deu nos últimos anos da década de setenta. A “meia idade” já me permite fazer certas analogias. Refiro-me ao filme baseado na obra de Nelson Rodrigues “bonitinha, mas ordinária”. Tinha 11 ou 12 anos quando presenciei a conversa entre a minha mãe e minha avó. Elas foram assistir ao filme protagonizado por Lucélia Santos. A atriz acabara de fazer enorme sucesso como a personagem principal da novela “escrava Isaura”. Foram ver a personagem e voltaram falando “cobras e lagartos” da atriz. Só me restou a imaginação das “cenas quentes” que me foram injustamente sonegadas, afinal, o título do filme e as metáforas moralistas das minhas queridas ascendentes não me permitiram pensar em outra coisa: sexo.

Naquela época peitinhos, bundas e “xoxotas” não estavam explicitamente à mostra na mídia e o acesso aos filmes “proibidos” não era fácil. Ver parte das nádegas de uma mulher podia levar qualquer jovem ao clímax. O casamento ainda era o meio mais eficaz para legitimar (e viabilizar) a prática sexual entre os jovens, e o uso de anticonceptivos ainda era tabu.

As mulheres eram, sem qualquer pudor, submissas na vida privada e não ocupavam cargos de relevância na pública. Dentre as virtudes femininas estava a habilidade nas tarefas domésticas. Sonhavam com o príncipe capaz de lhes "salvar" das amarras paternas.

Em apenas três décadas houve uma revolução moral, política, profissional e epistemológica da nossa sociedade. No campo moral, a mulher saiu do casulo e passou a ser dona do próprio nariz. Muitas, inspiradas no exemplo da "rainha dos baixinhos", fizeram “produção independente” e o patriarcado ficou decrépito e pereceu; no político, a Constituição "Cidadã" assegurou direitos iguais para homens e mulheres; no profissional, as mulheres ocuparam espaços no mercado de trabalho que eram historicamente masculinos; no epistemológico, as novas tecnologias (celulares, computadores, etc.) modificaram significativamente o comportamento humano com a difusão quase instantânea das informações.

A mídia convencional também se modificou. Acompanhando a transformação política e moral, as cenas de nudez e sexo se tornaram corriqueiras na televisão e no cinema, estimulando um culto ao corpo desenfreado (não é sem razão que, hoje, as academias estão lotadas). Consequentemente as relações sexuais passaram a ocorrer cada vez mais precocemente e sem a necessidade de um relacionamento estável do casal. O consentimento foi tácito, mas inevitável. O comportamento humano inexoravelmente se modificou. À liberdade política sucedeu à sexual. No novo Estado brasileiro a proibição se tornou exceção, como que parafraseando o grande poeta Caetano Veloso: “É proibido proibir!”

O corpo (em especial o bunda) também se libertou. Grethem, Rita Cadilac, Carla Peres, Xuxa, Angélica e outras construíram, com movimentos sensuais, o imaginário popular na dança (inclusive infantil), sem precedentes na história nacional. Os ritmos musicais - forró, lambada, axé, brega, funk, etc. - também contribuíram para a popularização dos ousados movimentos. Tudo em perfeita sintonia com as letras das músicas, numa combinação de palavras e expressões inimagináveis em um passado relativamente recente.

No início da década de oitenta a palavra "pentelho" foi proibida na música "Ciranda da bailarina", do compositor Chico Buarque. Em menos de uma década os "Mamonas Assassinas" fizeram enorme sucesso utilizando em suas "músicas" expressões chulas, obscenas e fora de qualquer contexto lógico: "sabão crá-crá, sabão crá-crá, não deixe os cabelos do saco enrolar".

Num ritmo estonteante, pensamento e comportamento sofreram uma metamorfose radical. As mudanças somente não foram maiores porque as gerações atuais foram direta ou indiretamente educadas por aquelas que “beberam da fonte” dos valores de outrora, os quais, uma vez internalizados, não se dissipam pelos poros com facilidade. O espírito foi contaminado por uma praga deletéria. Eis o grande paradoxo da incontrolável e frenética transformação da nossa sociedade. As mutações estéticas e morais não foram acompanhadas pelo universo emocional do sujeito, ou seja, psicologicamente continuamos estacionados em algum lugar do passado. Pensamos e apreendemos o mundo de uma forma e o desejamos de outra. A experiência do doutor frankstein criou um ser híbrido e em dissonância consigo mesmo: com algumas faculdades Hipertrofiadas e outras pouco desenvolvidas.

A "educação" dos valores continuou a mesma. Alguns se modificaram, mas a forma de pensá-los e transmiti-los não se alterou. Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, nos ensina que esse descompasso da ação (ou da vida) com o pensamento é característica da cultura ocidental. É nesse sentido que o homem moderno é hipócrita. Quer se emancipar e ao mesmo tempo quer se manter sob a proteção de elementos absolutos. Apesar das inegáveis transformações da sociedade, continuamos dependendo desses referenciais justificadores da vida. A transformação ocorre no exterior, mas o interior do sujeito permanece o mesmo.

Mas o que mantém essa imutabilidade psicológica? Nietzsche diria que ela é fruto de uma educação tradicional e essencialista, baseada na crença em valores supremos, por isso verdadeiros e imutáveis. Nesse contexto a liberdade é uma ilusão. Por isso os conceitos (amor, casamento, felicidade, honestidade, etc.) que utilizamos são os mesmo dos nossos antepassados. Os artifícios educacionais os mantém vivos em nosso pensamento.

Nietzsche diz que criamos esses ideais (como verdades) porque não nos sentimos fortes o suficiente para enfrentar a vida em sua nudez objetiva, limitada e carente de significado. Logo, buscamos uma justificação metafísica para ela. Recorremos à religião, à ética, à ciência, etc. Mas essa “estratégia” de superação das dores do dia a dia tem o seu preço. Ao negarmos a experiência do tempo e da morte, negamos também o CORPO, o AGORA, o CONFLITO e a TRANSFORMAÇÃO. Vivemos em um mundo em que a vida, no sentido da sensibilidade, é desprezada. O ocidente cultuou Apolo e desprezou Dionísio.

Para o filósofo, essa forma de o homem se relacionar com os fenômenos existenciais instituiu um tipo psicológico denominado “doente”. Este sujeito utiliza a palavra – os adjetivos morais – para causar no espírito dos "sadios" o sentimento de pecado, erro e transgressão. E quando estes introjetam esses sentimentos, eles já estão na seara dos "doentes" e não mais viverão a vida afirmativamente no fluxo dos sentidos, pois passaram a priorizar os valores absolutos como justificadores das suas existências. Essa situação fez com que o homem criasse uma imagem de si idealizada (superior a que pode ser vivida), para amenizar as suas desditas. Essa dependência psicológica somente é superada pelo "super homem" (ou "além do homem"), que é o ser - imaginado por Nietzsche - capaz de viver sem esses consolos metafísicos.

Utilizando essas premissas, podemos dizer que os jovens estudantes envolvidos no episódio foram vítima de uma sociedade hipócrita (e doente), que vive uma cultura do corpo e dos sentidos, mas julga e condena a partir de valores absolutos e inalienáveis. Uma sociedade que, em pleno séc. XXI, vê o corpo se libertar, mas ainda o reprime como sede do pecado. Que fecha os olhos para as transformações sociais, tratando os adolescentes idealmente como seres assexuados, impondo-lhes uma "verdade" anacrônica e castradora. A vida em suas peculiaridades foi desprezada pelo discurso universalizador, relegando a segundo plano o inestimável valor das vivências e experiências próprias.

Apesar da inegável mudança da sociedade, estamos ainda ligados aos cânones que nos são ensinados desde os primeiros anos de vida, consubstanciando-se em leis morais e jurídicas (como o Estatuto da Criança e do Adolescente), criando a “superestrutura” do meio onde vivemos. Somos educados para esses valores desde os verdes anos e, desde então, passamos a viver em função desses ideais, ignorando por completo a possibilidade de nos "construirmos" a partir de novas experiências. A verdade está fora de nós e ela é cognoscível. A educação nos torna “BONS”, no sentido moral; e “CIDADÃOS”, no jurídico. Fugir desse modelo é sinônimo de desajuste, o que justifica o uso de todos os mecanismos de contenção da conduta. Essa forma de administrar os problemas humanos possui o seu fundamento na necessidade que temos de nos sentir amparados por um referencial qualquer que nos conforte das adversidades para as quais não fomos preparados para lidar.

Nesse contexto, é uma estupidez criticar a ação dos adolescentes. Eles apenas se expressaram da maneira mais intrínseca à nossa natureza: por meio das pulsões sexuais. Mas os condenamos porque estamos aferrados ao pensamento de como a conduta humana deve ocorrer. Assim fomos ensinados e aprendemos a interpretar o mundo a partir de um "modelo" que funciona como sinônimo de normalidade. Este fato, antes de mais nada, deveria ser um mote para debates, discussões e análises no âmbito da comunidade acadêmica (e fora dela) com o propósito de construir uma forma própria e consciente de tratar a questão do sexo na adolescência, justificando o caráter pedagógico, acadêmico e crítico da escola. Ao revés, Prevaleceu o silêncio tenebroso e implacável, característico das sociedades autoritárias onde a verdade - por ser verdade – não permite o debate de idéias.

Em suma, os adolescentes foram sumariamente condenados por uma prática comum na sociedade brasileira hodierna, mas que o discurso "competente" ignora. Transferi-los de estabelecimento educacional apenas ratificará esse absurdo, pois, sem qualquer análise contextual, sedimentará o entendimento de que os alunos cometeram uma incomensurável transgressão. Fixará ainda a esdrúxula idéia de que a vida é um erro e que apenas transferimos (junto com os alunos) a responsabilidade de decidir o caminho que devemos seguir ante essa coisa mágica e desconhecida que é a existência.

E ainda temos de ouvir o discurso dos “especialistas" despreparados: "A escola está se degenerando!" A estes Nietzsche, se pudesse, diria: A escola apenas reproduz os valores supremos. O homem se degenerou quando “engoliu” a idéia de que existe uma verdade e que esta deve estar acima do próprio homem, isto é, acima da vida!

Um comentário: