Eu que antes era e nem sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante, sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar, ora bizarro.
Em língua nacional ou qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória
De minha anulação."
(Eu, etiqueta - Carlos Drummond de Andrade)
Difunde-se em nossa sociedade, sem qualquer pudor, que vivemos num Estado Democrático de Direito. Democrático porque o poder, em tese, provém do povo; de Direito, porque as leis jurídicas regulam a relação que estabelecemos com os nossos concidadãos. Se esse discurso é verdadeiro, por que receamos em dizer o que pensamos, sentimos e valorizamos no local de trabalho, escola, ambiente familiar, etc.?
Essa forma inusistada de agir talvez tenha inspirado o poeta Vinícius de Moraes a dizer, no poema “O dia da criação”, que “os bares estão repletos de homens vazios”. Vazios talvez, mas o bar ainda é o lugar onde se pode dizer o que se pensa. Lá as pessoas são elas mesmas. Com uma ou duas na cabeça, mas elas mesmas. Pode-se xingar o mau patrão, falar mal da mulher lamurienta ou do marido desatento, criticar o professor chato e preciosista, e, com uma dose de ousadia, até se declarar insatisfeito com a opção sexual adotada.
Mas por que, em qualquer outro lugar (até na internet), tememos ser nós mesmos? Afinal o livre pensar tem ou não amparo na legislação pátria, em forma de princípio constitucional? Por que então curvamos a cabeça e falamos baixinho como se vivêssemos em pleno regime de exceção?
Partindo dessas premissas, penso que a questão que merece a nossa atenção não é se somos ou não livres, mas "o motivo de a liberdade não ser um valor para nós". Que tipo de pedagogia é essa que, em vez de nos estimular a prática de atos livres, nos faz temer a liberdade? O mais intrigante é que esse medo não é prerrogativa das pessoas com baixa formação acadêmica ou de níveis sociais e econômicos menos abastados. É um fenômeno que parece atingir a todos indistintamente.
Sem dar a devida atenção para esse fato, as nossas escolas, hipocritamente, alardeiam aos quatro ventos que objetivam formar "cidadãos críticos e autônomos", capazes de se lançar ao desconhecido em busca de novas experiências, vivendo para além das condições dadas cotidianamente. Ao revés, utilizam metodologia capaz unicamente de produzir seres mediocremente rotineiros; habilitados (e sem demonstrar qualquer inquietação) em aceitar a realidade dada, inserindo-se obedientemente num fluxo de acontecimentos que parece estar além das suas capacidades de deliberação. São “educados” para a obediência. Pior, são “educados” para GOSTAR da obediência e reconhecer nela o único caminho capaz de propiciar uma vida tranqüila e feliz.
Qualquer outra hipótese é sinônimo de transgressão, desordem, desarmonia, etc. Ficamos suscetíveis aos diversos castigos que os sistemas disciplinares possuem em nossa sociedade. Desde cedo esses mecanismos de contenção da conduta nos são ensinados e assim os internalizamos como justos, legítimos e necessários para o estabelecimento da ordem na vida gregária. Aprendemos, sem um exame acurado dos fatos, a temer a ocorrência do que nos causa dor e a desejar aquilo que nos afasta dela. Trocamos, assim, “voluntariamente” a possibilidade de experimentar a vida, de fazer com ela experiências de pensamento e ação, pela promessa de um conforto decorrente da posse de outros bens. Em outras palavras, somos gradativamente seduzidos pela promessa de felicidade, sem nos voltar reflexivamente para os motivos e fins do caminho que percorremos.
Institui-se, assim, uma pedagogia voltada para o cultivo do medo, ante o exercício da liberdade. Esta nos é apresentada como algo menos importante que um “prato de comida”. Como, desde os verdes anos, não cultivamos o gosto, nem reconhecemos a importância da liberdade, facilmente alienamos a nossa capacidade de produzir vivências, de elaborar novas relações e experiências com os acontecimentos. Trocamos o medo do desconhecido pela promessa de aquisição de bens conhecidos. De fato, como a liberdade pode ser um valor maior que um “prato de comida” se jamais a experimentamos? Nos ensinam, precocemente, que ela não tem valor prático. Que ela não mata a fome, não sacia as pulsões sexuais, não nos abriga das intempéries. E ainda, ao longo da vida, somos dissuadidos pelos exemplos que nos mostram os perigos do seu exercício. Ensinam-nos a conceber a liberdade como uma mera abstração, inferior às coisas concretas, com seus cheiros, cores e sabores. Parece que só os artistas e filósofos a amam e a inserem em seus “mundos paralelos”. No mundo “real”, não convém educar para o que não tem um sentido pragmático. A escola precisa nos colocar ante a realidade concreta e tangível para nos transformar em verdadeiros cidadãos.
Como a liberdade não é um valor para o sistema educacional de nossa sociedade, nós a trocamos por qualquer “prato de comida” e a alienamos com vistas a outros bens que nos garantam segurança e conforto. Mas, será essa troca legítima e digna de nós seres humanos? A liberdade, de fato, possui ou não algum valor?
Ora, se a repulsa à liberdade não é congênita (da natureza dos seres humanos), mas resultado de um processo cultural de adaptação e controle, como creio, há de se supor que ela decorra da relação ensino-aprendizagem, que é a característica dos processos educacionais em qualquer sociedade humana. Logo, podemos pensá-la a partir dos dois pólos que a compõe: Do ponto de vista de quem a ensina e do ponto de vista de quem é instruído. Partindo da infância do homem civilizado (quando a razão ainda não preside as suas ações) encontramos um procedimento comum, do ponto de vista metodológico, encetado pelo “professor”: procura-se conter a conduta do “aluno”, desenvolvendo-lhe certos sentimentos ante a realidade. O “professor” cria um discurso capaz de garantir que o “aluno” faça aquilo que por ele é querido. Assim, introduz-se o MEDO como instrumento pedagógico. O bicho-papão e todos os mitos cosmogônicos nisto se assemelham. Explicam os fenômenos e ao mesmo tempo condicionam o homem, segundo a vontade de quem detém o poder político. Em outras palavras, ENSINA-SE PARA CONTROLAR. Política e educação, desde o princípio, andam juntas.
*
"Boi, boi, boi, boi da cara preta,
Pega essa criança que tem medo
De careta.
Boi, boi, boi, boi do Piauí,
Pega essa criança que não gosta
de dormir"
*
"Boi, boi, boi, boi da cara preta,
Pega essa criança que tem medo
De careta.
Boi, boi, boi, boi do Piauí,
Pega essa criança que não gosta
de dormir"
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Com o passar do tempo o homem entra na adolescência e os louros da razão principiam aparecer. Neste momento, há o reconhecimento – agora lógico - da existência de limitações (sistema de regras) que impõe deveres e obrigações. No plano individual, a moral cumpre o seu papel limitador; no coletivo, surge o Estado, com as regras jurídicas, para propiciar o bem e afastar o mal. Tem-se aí o amparo psicológico necessário para consolidar essa transferência de poder e a consolidação do medo – agora intelectualmente apreendido – por meio dos diversos sistemas disciplinares incorporados ao patrimônio psicológico do sujeito. A família, Escola, sociedade civil e a igreja cumprem esse "papel pedagógico". Tudo funciona como numa sociedade de escambo. Dá-se algo em troca de outro bem desejado. Mas o que essas instituições querem de nós em troca de tantos bens necessários a uma boa vida? Não seria a OBEDIÊNCIA aos ditames do sistema esse bem precioso, isto é, a alienação da nossa liberdade?
Mas como esse bem pode ser a liberdade se, como foi dito alhures, a trocamos por um simples “prato de comida”? Sequer temos a oportunidade de com ela nos acostumar. Mas, se é esse o bem que os detentores do poder querem, chegamos a uma dúbia conclusão. A liberdade é valiosa para uns e não o é para outros. Quem a tem em alta conta e, a todo custo, quer limitá-la são os poderosos. Quem a despreza, os dominados. Se este raciocínio logra algum sentido, podemos inferir que a liberdade tem a sua importância recuperada, porém pelos inquilinos do poder. Estes sabem que o seu exercício ameaça aquilo que mais lhes interessa: a manutenção das funções de mando na sociedade e a posse de bens materias. Por isso se empenham em financiar uma pedagogia voltada ao cultivo da dependência, da suborndinação e do medo. Patrocinam, desde os verdes anos, o condicionamento dos "educandos", estimulando-os a não ansiar pela busca de novas experiências. Por outro lado, ainda reprimem aqueles que se mostram indóceis a esses ensinamentos.
Chegamos assim ao ponto crucial da nossa caminhada. Podemos, enfim, dizer que a liberdade é um bem como outro qualquer, suscetível de manipulação pelo homem. Não a valorizamos porque não a experimentamos e não adquirimos a dimensão prática da sua importância. Depois somos vítimas de um processo educacional que naturaliza a busca irrefreada por outros bens considerados mais importantes para uma boa vida. Tudo ocorre sem que percebamos a interferência dos interesses políticos e econômicos que subjazem às ações humanas. Por isso não percebemos que a troca da liberdade por conforto e segurança é falsa, ilusória e totalmente desvantajosa a quem a realiza, porque não há garantia quando as decisões não nos pertencem. E se o poder de intervenção no curso dos acontecimentos foi transferido, a qualquer momento e sem permissão a nossa vida pode ser modificada de uma forma contrária aos nossos interesses.
Essa pedagogia não é mais que uma falsa pedagogia ou contra-pedagogia, porque ela presta um desserviço ao homem, salvo àqueles que dela consomem os frutos.
Por isso os filósofos e artistas se conflitam com os poderosos, porque percebem que não há ingenuidade nas ações humanas. Desmistificam os instrumentos ideológicos que estão a serviço destes, trazendo à baila as contradições da forma de existir humana. Desbanalizam os artifícios criados para enfraquecer o homem e que o torna presa fácil de si mesmo.
P.S. - Texto dedicado aos queridos alunos do curso de Licenciatura em Pedagogia do IFPA.
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