A
CONSCIÊNCIA MÍTICA
1.
Introdução
.
Entre os inúmeros relatos de índios habitantes
das terras brasileiras, encontramos o da origem do dia e da noite: ao transportarem
um coco, ouviram sair de dentro dele ruídos estranhos e não resistiram à
tentação de abri-lo, apesar de recomendações contrárias. Deixaram escapulir
então a escuridão da noite. Por piedade divina, a claridade lhes foi devolvida
pela Aurora, mas com a determinação de que nunca mais haveria só claridade,
como antes, mas alternância do dia e da noite.
Semelhantemente, os gregos dos tempos
homéricos relatam a lenda de Pandora, que, enviada aos homens, abre por curiosidade
a caixa de onde saem todos os males. Pandora consegue fechá-la a tempo de reter
a esperança, única forma de o homem não sucumbir às dores e aos sofrimentos da
vida.
Observando os dois relatos, percebemos
semelhanças: ambos falam de curiosidade, desobediência e castigo (a escuridão
ou os males).
A leitura apressada, na busca do sentido do
mito, pode nos levar a pensar que se trata apenas de uma maneira fantasiosa de
explicar a realidade ainda não justificada pela razão (no exemplo, a explicação
da origem do dia e da noite e a da origem dos males). Essa compreensão do mito
não esconde o preconceito comum de identificá-lo com as lendas ou fábulas, e,
portanto, como uma forma menor de explicação do mundo, prestes a ser superada
por explicações mais racionais.
No entanto, a noção de mito é complexa e mais
rica do que essa posição redutora. Mesmo porque omito não é exclusividade de
povos primitivos, nem de civilizações nascentes, mas existe em todos os tempos
e culturas como componente indissociável da maneira humana de compreender a
realidade.
Só para antecipar a discussão, vejamos alguns
exemplos de diferentes tipos de mitos modernos.
Quando alguém diz que o socialismo é um mito,
pode estar dizendo que se trata de algo inatingível, de uma mentira, de uma
ilusão que não leva a lugar nenhum. Mas, opondo-se ao sentido negativo de mito,
outros irão ver positivamente o mito do socialismo como utopia, o lugar do
"ainda-não", cuja força mobiliza as pessoas a construírem o que um
dia poderá "vir–a ser".
Em tempos difíceis, Hitler fez viver o mito da
raça ariana, por ele considerada a raça pura, desencadeando movimentos apaixonados
de perseguição e genocídio. Os contos de fada, as histórias em quadrinhos, sem
dúvida nenhuma trabalham com imaginário e mitos universais como o do herói e o
da luta entre o bem e o mal.
Examinando as manifestações coletivas no
cotidiano da vida urbana, descobrimos componentes míticos no carnaval, no futebol,
ambos como manifestações delirantes do imaginário nacional e da expansão de forças
inconscientes. Herói e o da luta entre o bem e o mal.
Da mesma forma, os psicanalistas aproveitam a
riqueza do mito e descobrem nele modelos que se acham nas raízes do desejo
humano: a pedra angular da psicanálise se encontra na interpretação feita por
Freud do mito de Edipo.
Podemos ainda nos referir a um artista famoso
como um mito: James Dean como o mito da "juventude transviada" ou, então,
Marilyn Monroe ou Madonna como mito sexual.
A lista possível das conotações diversas que o
mito assume não termina aqui. Apenas quisemos mostrar como um conceito tão amplo
e rico não se esgota numa só linha de interpretação.
O mito não é resultado de delírio, nem uma
simples mentira, O mito ainda faz parte da nossa vida cotidiana, como uma das
formas indispensáveis do existir humano.
***nota
Sófocles, dramaturgo grego do século V a.C.
relata esse mito na tragédia Édipo rei. Em vão Édipo tenta fugir ao destino
vaticinado pelo oráculo: matar o pai e desposar a própria mãe, Ao retomar omito
grego, Freud refere -se ao "complexo de Édipo", que representa o
desejo inconsciente de toda criança.
Gravura
São Raimundo Nonato, no Piauí
tornou-se grande centro arqueológico com a descoberta de registros rupestres
que datam de até 12 mil anos antes da chegada dos colonizadores.
Nas representações figurativas
reconhecem-se gestos que estariam ligados ao sistema simbólico da etnia como
cerimoniais, ritos e mitos. Na ilustração, três registros encontrados em locais
diferentes. (Anne -Marie e Niéde Guidon. Registros rupestres e caracterização
das etnias pré-históricas.
VIDAL, Lux, org. Grafismo
indígena. São Paulo, Nobel/Fapesp/Edusp, 1992.)
2. O mito entre os primitivos
.
Comecemos pelos povos primitivos, entre os
quais o mito é estrutura dominante. Foi importante a contribuição dos
antropólogos que, a partir do início do século, desenvolveram muitos contatos
diretos com tribos das ilhas do Pacífico, da África e do interior do Brasil.
Esses "trabalhos de campo", como são chamados, mostram que o mito
vivo é muito mais expressivo e rico do que supomos quando apenas ouvimos o
relato frio das lendas desligadas do ambiente que as fez surgir.
Enquanto processo vivo de compreensão da
realidade, o mito surge como verdade. Quando pensamos em verdade, é comum nos
referirmos às explicações racionais em que a coerência lógica é garantida pelo
rigor da argumentação e da exigência de provas. Mas não é essa a verdade do mito,
que é verdade intuída, isto é, percebida de maneira espontânea, sem exigência
de comprovações. O critério de adesão do mito é a crença, e não a evidência racional.
O mito é, portanto, uma intuição
compreensiva da realidade, é uma forma espontânea de o homem situar-se no
mundo. E as raízes do mito não se acham nas explicações exclusivamente
racionais, mas na realidade vivida, portanto pré-reflexiva, das emoções e da
afetividade.
Ao entrar em contato com o mundo, o homem não
é apenas uma "cabeça que pensa diante de um "mundo como tal". Entre
os dois existe a fantasia, a imaginação. Portanto, antes de interpretar o mundo,
o homem o deseja ou o teme. Nesse sentido, volta-se para ele ou dele se oculta.
Por isso, o primeiro "falar sobre o
mundo" está preso ao desejo humano de dominá-lo, afugentando a
insegurança, os temores e a angústia diante do desconhecido e da morte.
Funções do mito
Embora tenhamos nos referido ao mito enquanto
forma de compreensão, a sua função não é, primordialmente, explicar a
realidade, mas acomodar e tranquilizar o homem em um mundo assustador.
Os primeiros modelos de construção do real são
de natureza sobrenatural, isto é, o homem recorre aos deuses para apaziguar sua
aflição. É um discurso de tal força, que se estende por todas as dependências
da realidade vivida, e não apenas no campo sagrado (ou seja, da relação entre o
homem e o divino), mas existe em toda a atividade humana.
Como indicam os exemplos a seguir, o mito se
manifesta:
§ Na
preocupação com a origem divina da técnica: veja o mito de Prometeu, que roubou
o fogo dos deuses para dá–lo aos homens;
§ Na
natureza divina dos instrumentos: ainda em nossos dias subsiste entre os povos
primitivos o culto a certos utensílios, como a enxada ou o anzol, a lança ou a espada;
§ Na
origem da agricultura: o mito indígena de Mani, de cujo túmulo nasce a mandioca,
alimento básico; ou o mito grego de Perséfone, levada por Hades para seu
castelo tenebroso, simbolizando o trigo enterrado como semente e renascendo
como planta;
§ Na
origem dos males: o mito de Pandora, como já vimos;
§ Na
fertilidade das mulheres: os arunta, povo australiano, acham que os espíritos
dos mortos esperam a hora de renascer e penetram no ventre das mulheres quando
elas passam por certos locais;
§ No
caráter mágico das danças e desenhos: quando o homem de Cro-Magnon fazia
afrescos nas paredes das cavernas, representando a captura de renas, não
pretendia propriamente enfeitar a caverna nem mostrar suas habilidades
pictóricas, mas desejava agir magicamente, garantindo de antemão o sucesso da
caçada futura.
§
Isso significa que no mundo primitivo tudo é
sagrado e nada é natural.
Para Mircea Eliade, filósofo romeno estudioso
do mito e das religiões, uma das funções do mito é fixar os modelos exemplares
de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas.
Dessa forma, o homem imita os gestos exemplares
dos deuses, repetindo nos ritos as ações deles. Quando o missionário e etnólogo
Strehlow perguntava aos arunta por que celebravam determinadas cerimônias,
obtinha invariavelmente a mesma resposta: "Porque os ancestrais assim o prescreveram".
Essa é também a justificativa invocada pelos teólogos e ritualistas hindus:
"Devemos fazer o que os deuses fizeram no princípio"; "Assim
fizeram os deuses, assim fazem os homens".
Nos rituais, os arunta não se limitam a
representar ou imitar a vida, os feitos e as aventuras dos ancestrais: tudo se passa
como se estes aparecessem nas cerimônias. Nesse sentido, o tempo sagrado é
reversível, ou seja, toda festa religiosa não é uma simples comemoração, mas torna-se
a ocasião em que o sagrado acontece novamente e representa a reatualização do
evento sagrado que teve lugar no passado mítico, "no começo".
Na sua ação, o homem primitivo imita os deuses
nos ritos que atualizam os mitos primordiais, pois, caso contrário, estão
convencidos de que a semente e não brotará da terra, a mulher não será
fecundada, a árvore não dará frutos, o dia não sucederá à noite.
A forma sobrenatural de descrever a realidade
é coerente com a maneira mágica pela qual o homem age sobre o mundo, como, por
exemplo, com os inúmeros ritos de passagem do nascimento, do casamento, da
morte, da infância para a idade adulta. Sem os ritos, é como se os fatos
naturais descritos não pudessem se concretizar de fato.
Segundo Mircea Eliade, "quando acaba de
nascer, a criança só dispõe de uma existência física, não é ainda reconhecida
pela família nem recebida pela comunidade.
São os ritos que se efetuam
imediatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de
'vivo" propriamente dito; é somente graças a estes ritos que ele fica integrado
na comunidade dos vivos. (...) No que diz respeito à morte, os ritos são tanto
mais complexos quanto se trata não-somente de um "fenômeno natural" (a
vida - ou a alma – abandonando o corpo), mas também de uma mudança de regime a
o mesmo tempo ontológico e social: o defunto deve afrontar certas provas que interessam
ao seu próprio destino post-mortem, mas deve também ser reconhecido pela comunidade
dos mortos e aceito entre eles"
3. O homem primitivo e a consciência de si
.
Como todo o real é interpretado
por meio do mito, e sendo a consciência mítica uma consciência comunitária, o homem
primitivo desempenha papéis que o distanciam da percepção de si como sujeito
propriamente dito. Não é ele que comanda sua ação, já que sua experiência não
se separa da experiência da comunidade, mas se faz por meio dela.
Isso não quer dizer que não haja nenhum
princípio de individuação, mas que o equilíbrio individual é feito de maneira diferente,
mediante a preponderância do coletivo sobre o individual. Como diz Gusdorf,
"a primeira consciência pessoal está, portanto, presa na massa comunitária
e nela submergida. Mas esta consciência dependente e relativa não é uma
ausência de consciência; é uma consciência em situação, extrínseca e não
intrínseca, a individualidade aparecendo então como um nó no tecido complexo
das relações sociais. E o “eu” se afirma pelos outros, isto é, ele não é
pessoa, mas personagem"3.
A decorrência do coletivismo é o dogmatismo: a
consciência mítica é ingênua (no sentido de não crítica), desprovida de problematização
e supõe a aceitação tácita dos mitos e das prescrições dos rituais. A adesão ao
mito é feita pela fé, pela crença.
Da visão dogmática decorre a moral dogmatizante,
pois, na comunidade que vive sob a preponderância do mito, vimos que a dimensão
pessoal se acha submetida ao coletivo, determinando a adaptação sem crítica do indivíduo
às normas da tradição.
No universo cuja consciência é coletiva, a
transgressão da norma ultrapassa quem a violou. Por isso o tabu, proibição sempre
envolta em clima de temor e sobrenaturalidade, ao ser transgredido, estigmatiza
a família, os amigos e, às vezes, toda a tribo. Daí os ritos de purificação"
e os rituais do "bode expiatório", nos quais o pecado é transferido só
animal. É bom lembrar que, segundo o relato da tragédia, o crime de Edipo traz
toda sorte de pragas para Tebas, e o sábio Tirésias vaticina que a cidade só se
livraria quando encontrado o assassino de Laio.
4. Mito e religião
.
"No desenvolvimento da cultura humana, não
podemos fixar um ponto onde termina o mito e a religião começa. Em todo curso
de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos
míticos e repassada deles."4
Podemos distinguir três fases na formação dos
conceitos de deuses:
A primeira fase é caracterizada pela
multiplicidade de deuses momentâneos, assim chamados porque não perduram além
do momento. São simplesmente excitações instantâneas, fugidias, às quais é
atribuído o valor de divindade, e cuja fonte é a emoção subjetiva, marcada
ainda pelo medo. Esses deuses não representam nem forças da natureza nem
aspectos especiais da vida humana. Às vezes, trata-se de um conteúdo mental,
como a alegria, a decisão, a inteligência; outras, de um objeto ou de qualquer
realidade percebida como tendo sido repentinamente enviada do Céu.
Na segunda fase, há a descoberta do sentimento
da individualidade do divino, dos elementos pessoais do sagrado. O surgimento dessa
nova etapa se dá à medida que a ação exercida pelo homem sobre o mundo se torna
mais complexa, fazendo surgir a divisão do trabalho. Assim, toda atividade humana
particular ganha o seu deus funcional, que vigia cada etapa do trabalho dos homens.
A regulação da atividade encontra sua medida na própria periodicidade dos
ciclos naturais (as estações do ano, o plantio, a colheita etc.). E cada ato, por
mais especializado que seja, adquitrquire um significado religioso: o homem recorre
a divindades que devem protegê-lo a cada momento. Entre os gregos, por exemplo,
Deméter preside o ritmo das estações e das colheitas; Afrodite, o amor, e assim
por diante.
2M. Eliade, O sagradoeoprofano, p. 143 -144.
3. usdorf , Mito e metafísica, p. 102 .
4E. Cassírer, Antropologia Filosófica, p.
143.
Ao mesmo tempo, o caráter
existencial do mito conduz à prática de rituais mágicos, e a fé na magia
constitui o despertar da confiança do homem em si mesmo - Ele não se sente mais
à mercê das forças naturais e sobrenaturais e desempenha o seu papel, convicto
de que o que acontece no mundo natural depende, em parte, dos atos humanos.
Como exemplo, podemos citar os ritos mágicos da fertilidade, sem os quais se
acreditava que nem a terra frutificaria nem a mulher conceberia. Convém lembrar
aqui que a magia tanto pode ser usada para o bem como para o mal, uma vez que
não se encontra ligada a princípios éticos.
A terceira fase caracteriza-se pelo
aparecimento do deus" pessoa.5 Ele é fruto do processo histórico que
inclui o desenvolvimento linguístico e aparece quando o nome do deus funcional,
derivado do círculo de atividade especial que lhe deu origem, perde a ligação
com essa atividade e torna-se um nome próprio, constituindo um novo ser que
continua a se desenvolver segundo suas próprias leis.
O deus pessoal caracteriza-se por ser capaz de
sofrer e agir como os homens. Ele atua de maneiras diversas e seus múltiplos
nomes expressam diferentes aspectos de sua natureza, seu poder e sua
eficiência. Como exemplo, a deusa grega Atenas, filha de Zeus, surge
inicialmente como deusa guerreira, que protege os exércitos.
Aos poucos, à medida que a guerra
se torna um trabalho, ela passa a proteger o trabalho em geral e, mais tarde, o
trabalho intelectual especificamente e as artes. Ao mesmo tempo, é deusa da
sabedoria, a protetora da cidade de Atenas.
Como desenvolvimento da terceira fase, surgem
as religiões monoteístas, decorrentes de forças morais e que se concentram no
problema do bem e do mal. A natureza passa a ser abordada pelo lado racional, e
não mais pelo emocional, como acontecia nas fases anteriores. O divino deixa também
de ser concebido pelos poderes mágicos e passa a ser enfocado pelo poder de justiça.
"O sentido é tico substituiu e suplantou o sentido mágico, a vida inteira
do homem se converte numa luta constante pelo amor da justiça."5
***
5. E. Cassirer. ,Antropologia Filosófica, p.
162.
É
pelo exercício do livre-arbítrio, agora que o homem entra em contato com o sagrado.
Ao dar a sua livre adesão ao bem, torna -se um aliado da divindade, praticando o
"dever " religioso.
5. O mito hoje
.
A consciência do homem pré-histórico que
existe antes do advento da escrita, permanece ingênua e dogmática. No Capítulo
7(mito e razão), veremos a passagem para o pensamento reflexivo com a consequente
quebra da unidade do mito. A nova forma de compreensão do mundo dessacraliza o
pensamento e a ação (isto é, retira dele o caráter de sobrenaturalidade),
fazendo surgir a filosofia, a ciência, a técnica, a religião.
Perguntamos então: o desenvolvimento do
pensamento reflexivo deveria decretar a morte da consciência mítica?
Quando Augusto Comte, filósofo francês do século
XIX e fundador do positivismo, explica a evolução da humanidade com a teoria
dos três estados, define a maturidade do espírito humano pelo abandono de todas
as formas míticas e religiosas. Com isso privilegia o fato positivo, ou seja, o
fato objetivo, que pode ser medido e controlado pela experimentação.
Essa posição opõe radicalmente o mito à razão,
ao mesmo tempo que inferioriza o mito como tentativa fracassada de explicação
da realidade. Ao criticar o mito, o positivismo se mostra reducionista,
empobrecendo as possibilidades de abordagens do mundo abertas ao homem. A
ciência é necessária, mas não é a única interpretação válida do real, nem é
suficiente. Quando exaltada, faz nascer o mito do cientificismo: a crença na
ciência como única forma de saber possível é mitos também prejudiciais, como o
do progresso, cujo fruto mais amargo é a tecnocracia, e os da objetividade e neutralidade
científicas (ver capítulo II - O conhecimento científico).
Contrariando o positivismo, precisamos
recuperar o mito, hoje, em sua importância como forma fundamental de todo viver
humano. Ele é a primeira leitura do mundo, e o advento de outras abordagens do
real não retira do homem aquilo que constitui a raiz da sua inteligibilidade. O
mito é o ponto de partida para a compreensão do ser.
Em outras palavras, tudo o que pensamos e
queremos se situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos
míticos, cujo sentido existencial serve de base para todo trabalho posterior da
razão.
A função fabuladora persiste não só nos contos
populares, no folclore, como também na vida diária do homem ao proferir certas
palavras ricas de ressonâncias míticas: casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade,
morte, cuja definição objetiva não esgota os significados subjacentes que ultrapassam
os limites da própria subjetividade. Essas palavras nos remetem a valores arquetípicos.
Isto é, valores que são modelos universais, existentes na natureza inconsciente
e primitiva de todos nós.
O mesmo sucede com personalidades que os meios
de comunicação se incumbem de transformar em imagens exemplares. Como artistas,
políticos, esportistas, e que, no imaginário das pessoas, representam todos os
tipos de anseios: sucesso, poder, liderança, sexualidade etc.
Nas histórias em quadrinhos, o maniqueísmo
retoma o arquétipo da luta entre o bem e o mal, e a dupla personalidade do
super-herói atinge em cheio o desejo do homem moderno de superar a própria
impotência, tornando -se um ser excepcional.
O comportamento do homem também é permeado de
"rituais", mesmo que secularizados: as comemorações de nascimentos,
casamentos, aniversários, os festejos de ano novo, as festas de formatura, de
debutantes, trote de calouros, lembram verdadeiros ritos de passagem.
Até as mais racionais adesões a partidos
políticos e a correntes de pensamento supõem esse pano de fundo,
não-justificado e injustificável, em que o homem se move em direção a um valor
que o apaixona e que só posteriormente busca explicitar pela razão.
Mito e razão se complementam mutuamente. No
entanto, o mito, recuperado no cotidiano do homem contemporâneo, não se apresenta
com a abrangência que se fazia sentir no homem primitivo. O nascimento da
reflexão permite a rejeição dos mitos prejudiciais ao homem. O exercício da crítica
racional faz a diferenciação deles, legitimando alguns e negando outros que
levam à desumanização.
Para Gusdorf, "o mito propõe todos os valores,
puros e impuros. Não é da sua atribuição autorizar tudo o que sugere. Nossa
época conheceu o horror do desencadeamento dos mitos do poder e da raça, quando
seu fascínio se exercia sem controle. A sabedoria é um equilíbrio. O mito
propõe, mas cabe à consciência dispor. E foi talvez porque um racionalismo estreito
demais fazia profissão de desprezar os mitos, que estes, deixados sem controle,
tornaram-se loucos"6.
6 G. Gusdorf, Mito e metafísica, p. 308.
DO MITO À RAZÃO: NASCIMENTO DA FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA
Advento da Polis, nascimento da
filosofia: entre as duas ordens de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos
para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das
estruturas sociais e mentais próprias da cidade grega.
(Jean-Pierre Vernant)
1. Introdução
.
Todos nós sabemos que os
primeiros filósofos da humanidade foram gregos. Isso significa que embora
tenhamos referências de grandes homens na China (Confúcio, Lao Tsé), na Índia
(Buda), na Pérsia (Zaratustra), suas teorias ainda estão por demais vinculadas
à religião para que se possa falar propriamente em reflexão filosófica.
O que veremos neste capítulo é o processo pelo
qual se tornou possível a passagem da consciência mítica para a consciência
filosófica na civilização grega, constituída por diversas regiões politicamente
autônomas.
Periodização da história da Grécia
Antiga
§ Civilização
micênica -p desenvolve-se desde o início do segundo milênio a.C. e tem esse
nome pela importância da cidade de Mícenas, de onde, no século XII a.C., partem
Agamemnon, Aquiles e Ulisses para sitiar e conquistar Tróia.
§ Tempos
homéricos (séculos XII a VIII a.C.) - são assim chamados porque nesse período
teria vivido Homero (século IX ou VIII). Na fase de transição de um mundo
essencialmente rural, o enriquecimento dos senhores faz surgir a aristocracia
proprietária de terras e o desenvolvimento do sistema escravista.
§ Período
arcaico (séculos VIII a VI a.C .) - Grandes alterações sociais e políticas com
o advento das cidades–estados pólis) e desenvolvimento do comércio e consequente
movimento de colonização grega.
§ Período
clássico (séculos V e IV a.C -) - apogeu da civilização grega. Na política,
expressão da democracia ateniense; explosão das artes, literatura e filosofia. Época
em que viveram os sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles.
§ Período
helenístico (séculos III e II a.C.) - decadência política da Grécia, com o domínio
macedônico e conquista pelos romanos. Culturalmente se dá a influência das
civilizações orientais.
§
2. A concepção mítica
.
As epopéias
.
Os mitos gregos eram recolhidos pela tradição
e transmitidos oralmente pelos aedos e rapsodos, cantores ambulantes que davam
forma poética aos relatos populares e os recitavam de cor em praça pública. Era
difícil conhecer os autores de tais trabalhos de formalização, porque num mundo
em que predomina a consciência mítica não existe a preocupação com a autoria da
obra, já que o anonimato é a consequência do coletivismo, fase em que ainda não
se destaca a individualidade. Além disso, não havia a escrita para fixar obra e
autor.
Por esse motivo há controvérsia a respeito da
época em que teria vivido Homero, um desses poetas, e até se ele realmente
teria existido (séc. IX a.C.?).
É costume atribuir-lhe a autoria
de dois poemas épicos (epopéias): Ilíada, que trata da guerra de Tróia (Tróia
em grego é Ilion), e Odisséia, que relata o retorno de Ulisses a Ítaca, após a
guerra de Tróia (Odisseus é o nome grego de Ulisses). Por vários motivos,
inclusive pelo estilo diferente dos dois poemas, alguns intérpretes acham que
são obras de diversos autores.
De qualquer forma, as epopéias tiveram função
didática importante na vida dos gregos porque descrevem o período da civilização
micênica e transmitem os valores da cultura por meio das histórias dos deuses e
antepassados, expressando uma determinada concepção de vida. Por isso desde
cedo as crianças decoravam passagens dos poemas de Homero.
As ações heroicas relatadas nas epopéias
mostram a constante intervenção dos deuses, ora para auxiliar um protegido seu,
ora para perseguir um inimigo. O homem homérico é presa do Destino (Moira), que
é fixo, imutável, e não pode ser alterado. Até distúrbios psíquicos como o desvario
momentâneo de Agamemnon são atribuídos à ação divina. É nesse sentido a fala de
Heitor: "Ninguém me lançará ao Hades" contra as ordens do destino!
Garanto–te que nunca homem algum, bom ou mau, escapou ao seu destino, desde que
nasceu!"
O herói vive, portanto, na dependência dos
deuses e do destino, faltando a ele a nossa noção de vontade pessoal, de
livre-arbítrio. Mas isto não o diminui diante dos homens comuns. Ao contrário,
ter sido escolhido pelos deuses é sinal de valor e em nada tal ajuda desmerece
a sua virtude.
A virtude do herói se manifesta pela coragem e
pela força, sobretudo no campo de batalha, mas também na assembléia, no
discurso, pelo poder de persuasão.
O preceptor de Aquíles diz:
"Para isso me enviou, a fim de eu te ensinar tudo isto, a saber fazer
discursos e praticar nobres feitos".2 Nessa perspectiva, a noção de
virtude não deve ser confundida com o conceito moral de virtude como o conhecemos
posteriormente, mas como excelência, superioridade, alvo supremo do herói.
Trata –se da virtude do guerreiro belo e bom.
A Teogonia
.
Hesiodo, outro poeta que teria vivido por
volta do final do século VIII e princípios do VII a.C., produz uma obra com características
que apontam para a época que se vai iniciar a seguir, com particularidades que
tendem a superar a poesia impessoal e coletiva das epopéias.
Mas mesmo assim, sua obra
Teogonia (teo: deus; gonia: origem) reflete ainda a preocupação com a crença
nos mitos. Nela Hesíodo relata as origens do mundo e dos deuses, e as forças
que surgem não são a pura natureza, mas sim as próprias divindades: Gaia é a
Terra, Urano é o Céu, Cronos é o Tempo, surgindo ora por segregação, ora pela
intervenção de Eros, princípio que aproxima os opostos.
**
Hades: deus do Mundo Subterrãneo (em Roma:
Plutão). Também se refere ao Mundo dos Mortos (Infernos). 2 Esta citação e as referidas
no exercício 3 são da Íliada e Odisséia. apud Maria Helena Rocha Pere ira,
Estudos de históriu da cultura clássica, p. 90, 98. 101 e 102.
3. A concepção filosófica
.
É no período arcaico que surgem os primeiros
filósofos gregos, por volta de fins do século VII a.C. e durante o século VI
a.C.
Alguns autores costumam chamar de
"milagre grego" a passagem do pensamento mítico para o pensamento
crítico racional e filosófico. Atenuando a ênfase dada a essa
"mutação", no entanto, alguns estudiosos mais recentes pretendem
superar essa visão simplista e a-histórica, realçando o fato deque o surgimento
da racionalidade crítica foi o resultado de um processo muito lento, preparado
pelo passado mítico, cujas características não desaparecem "como por
encanto na nova abordagem filosófica do mundo. Ou seja, o surgimento da
filosofia na Grécia não foi o resultado de um salto, um "milagre"
realizado por um povo privilegiado, mas a culminação de um processo que se fez através
dos tempos e tem sua divida com o passado mítico.
Algumas novidades surgidas no período arcaico
ajudaram a transformar a visão que o homem mítico tinha do mundo e de si mesmo.
São elas a invenção da escrita, o surgimento da moeda, a lei escrita, o
nascimento da pólis (cidade -estado), todas elas tornando-se condição para o
surgimento do filósofo. Vejamos como isso se deu.
A escrita
.
Geralmente a consciência mítica predomina nas
culturas de tradição oral, onde ainda não há escrita. E interessante observar que
mythos significa "palavra", "o que se diz". A palavra antes
da escrita, ligada a um suporte vivo que a pronuncia, repete e fixa o evento
por meio da memória pessoal. Aliás, etimologicamente, epopéia significa "o
que se exprime pela palavra" e lenda é "o que se conta".
É bem verdade que, de início, a primeira
escrita é mágica e reservada aos privilegiados, aos sacerdotes e aos reis. Entre
os egípcios, por exemplo, hieróglifos significa literalmente "sinais
divinos".
Na Grécia, a escrita surge por influência dos
fenícios e já no século VIII a.C. se acha suficientemente desligada de preocupações
esotéricas e religiosas.
Enquanto os rituais religiosos
são cheios de fórmulas mágicas, termos fixos e inquestionados, os escritos
deixam de ser reservados apenas aos que detêm o poder e passam a ser divulgados
em praça pública, sujeitos à discussão e à crítica. Apenas um parêntese esclarecedor:
isso não significa que a escrita tenha se tornado acessível a todos. Muito ao contrário,
permanece ainda grande o número de analfabetos. O que está em questão, no
entanto, é a dessacralização da escrita, ou seja, seu desligamento da religião.
A escrita gera uma nova idade mental porque
exige de quem escreve uma postura diferente daquela de quem apenas fala. Como a
escrita fixa a palavra, e consequentemente o mundo, para além de quem a
proferiu, necessita de mais rigor e clareza, o que estimula o espírito crítico.
Além disso, a retomada posterior do que foi escrito e o exame pelos outros -
não só de contemporâneos, mas de outras gerações - abrem os horizontes do
pensamento, propiciando o distanciamento do vivido, o confronto das idéias, a
ampliação da crítica.
Portanto, a escrita aparece como possibilidade
maior de abstração, uma reflexão da palavra que tenderá a modificar a própria
estrutura do pensamento.
A moeda
Por volta dos séculos VIII a VI a.C. houve o
desenvolvimento do comércio marítimo decorrente da expansão do mundo grego
mediante a colonização da Magna Grécia (atual sul da Itália) e Jõnia (atual
Turquia). O enriquecimento dos comerciantes promove u profundas transformações decorrentes
da substituição dos valores aristocráticos pelos valores da nova classe em
ascensão.
Na época da predominância da aristocracia
rural, cuja riqueza se baseava em terras e rebanhos, a economia era pré-monetária
e os objetos usados para troca vinham carregados de simbologia afetiva e
sagrada, decorrente da posição social ocupada por homens considerados superiores
e do caráter sobrenatural que impregnava as relações sociais.
A fim de facilitar os negócios, a moeda, que
tinha sido inventada na Lídia, aparece na Grécia por volta do século VII a.C. A
moeda torna-se necessária porque, com o comércio, os produtos que antes eram
feitos sobretudo com valor de uso passam a ter valor de troca, isto é,
transformam-se em mercadoria. Daí a
exigência de algo que funcionasse como valor equivalente universal das
mercadorias.
A invenção da moeda desempenha papel
revolucionário, pois está vinculada ao nascimento do pensamento racional. Isso
porque passa a ser emitida e garantida pela cidade, revertendo benefícios para
a própria comunidade. Além desse efeito político de democratização, a moeda sobrepõe
aos símbolos sagrados e afetivos o caráter racional de sua concepção: muito
mais do que um metal precioso que se troca por qualquer mercadoria, a moeda é
um artifício racional, uma convenção humana, uma noção abstrata de valor que
estabelece a medida comum entre valores diferentes.
A lei escrita
Drácon (séc. VII a.C.), Sólon e Clistenes
(séc. VI a.C.) são os primeiros legisladores que marcam uma nova era: a justiça,
até então dependente da arbitrariedade dos reis ou da interpretação da vontade
divina, é codificada numa legislação escrita. Regra comum a todos, norma racional,
sujeita à discussão e modificação, a lei escrita passa a encarnar uma dimensão
propriamente humana.
As reformas provocadas pela legislação de
Clístenes fundam a pólis sobre uma base nova: a antiga organização tribal é abolida
e estabelecem-se novas relações, não mais baseadas na consanguinidade, mas
determinadas por nova organização administrativa. Tais modificações expressam o
ideal igualitário que prepara a democracia nascente, pois a unificação do corpo
social abole a hierarquia fundada no poder aristocrático das famílias.
O cidadão da pólis
Jean-Pierre Vernant, helenista e pensador
francês, vê no nascimento da pólis (por volta dos séculos VIII e VII a.C.) um acontecimento
decisivo que "marca um começo, uma verdadeira invenção", que provocou
grandes alterações na vida social e nas relações entre os homens.
A originalidade da cidade grega é que ela está
centralizada na agora (praça pública), espaço onde se debatem os problemas de
interesse comum. Separam–se na pólis o domínio público e o privado: isto
significa que ao ideal de valor de sangue, restrito a grupos privilegiados em função
do nascimento ou fortuna, se sobrepõe a justa distribuição dos direitos dos
cidadãos enquanto representantes dos interesses da cidade. Está sendo elaborado
o novo ideal de justiça, pelo qual todo cidadão tem direito ao poder. A nova
noção de justiça assume caráter político, e não apenas moral, ou seja, ela não
diz respeito apenas ao indivíduo e aos interesses da tradição familiar, mas se
refere a sua atuação na comunidade.
A pólis se faz pela autonomia da palavra, não
mais a palavra mágica dos mitos, palavra dada pelos deuses e, portanto, comum a
todos, mas a palavra humana do conflito, da discussão, da argumentação. O saber
deixa de ser sagrado e passa a ser objeto de discussão.
A expressão da individualidade por meio do
debate faz nascer a política, libertando o homem dos exclusivos desígnios divinos,
e permitindo a ele tecer seu destino na praça pública. A instauração da ordem
humana dá origem ao cidadão da pólis, figura inexistente no mundo coletivista
da comunidade tribal.
Portanto, o cidadão da pólis participa dos
destinos da cidade por meio do uso da palavra em praça pública. Mas para que
isso fosse possível, desenvolveu-se uma nova concepção a respeito das relações
entre os homens, não mais assentadas nas suas diferenças, na hierarquia típica
das relações de submissão e domínio. Ou seja, "os que compõem a cidade,
por mais diferentes que sejam por sua origem, sua classe, sua função, aparecem
de uma certa maneira "semelhantes" uns aos outros". De início a
igualdade existe apenas entre os guerreiros, mas "essa imagem do mundo humano
encontrará no século VI sua expressão rigorosa num conceito, o de isonomia: igual
participação de todos os cidadãos no exercício do poder"3.
**
2.
J.-P.
Vernant, As origens do pensamento grego, p. 42.
O apogeu da democracia ateniense se dá no
século V a.C., já no período clássico, quando Péricles era estratego. É bem
verdade que Atenas possuía meio milhão de habitantes, dos quais 300 mil eram
escravos e 50 mil metecos (estrangeiros); excluídas mulheres e crianças,
restavam apenas 10% considerados cidadãos propriamente ditos, capacitados para
decidir por todos.
Por isso, quando falamos em democracia ateniense,
é bom lembrar que a maior parte da população se achava excluída do processo
político. Aliás, quanto mais se desenvolvia a ideia de cidadão ideal, com a
consolidação da democracia, mais a escravidão surgia como contraponto indispensável,
na medida em que ao escravo eram reservadas as tarefas consideradas "menores"
dos trabalhos manuais e da luta pela sobrevivência. Mas não resta dúvida de
que, na fase aristocrática anterior, havia ainda outros tipos de privilégios. O
que enfatizamos no processo é a mutação do ideal político e o surgimento de uma
concepção nova de poder.
O ideal teórico da nova classe dos
comerciantes será elaborado pelos sofistas. filósofos do século V a.C. (ver
Capítulo 19 - O pensamento político grego).
O nascimento do filósofo
A grande aventura intelectual dos gregos não
começa propriamente na Grécia continental, mas nas colônias: na Jônia (metade
sul da costa ocidental da Ásia Menor) e na Magna Grécia (sul da península
itálica e Sicilia).
Os primeiros filósofos viveram por volta do
século VI a.C. e, mais tarde, foram classificados como pré-socráticos (a
divisão da filosofia grega se centraliza na figura de Sócrates) e agrupados em
diversas escolas. Por exemplo, escola jônica (Tales, Anaximandro, Anaxímenes,
Heráclito, Empédocles). Escola itálica (Pitágoras), escola eleática (Xenófanes,
Parmênides, Zenão); escola atomista (Leucipo e Demócrito).
Os escritos dos filósofos pré-socráticos
desapareceram com o tempo, e só nos restam alguns fragmentos ou referências
feitas por filósofos posteriores. Sabemos que geralmente, escreviam em prosa,
abandonando a forma poética característica das epopéias, dos relatos míticos.
É interessante notar que, enquanto Hesíodo, ao
relatar o princípio do mundo (cosmogonia) e dos deuses (teogonia), refere-se a
sua gênese ou origem, as preocupações dos primeiros pensadores levam à
elaboração de uma cosmologia, pois procuram a racionalidade do universo. Isso
significa que, ao perguntarem como seria possível emergir do Caos um "cosmos"
- ou seja, como da confusão inicial surgiu o mundo ordenado -, os
pré-socráticos procuram o princípio (a arché) de todas as coisas, entendido
este não como o que antecede no tempo, mas enquanto fundamento do ser. Buscar a
arché é explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas.
A filosofia surgiu no século VI
a.C. nas colônias gregas da Magna Grécia e da Jônia. Só no século seguinte
desloca-se para Atenas, centro da fermentação cultural do período clássico.
As respostas dos filósofos à questão do
fundamento das coisas são as mais variadas. Cada um descobre a arché, a unidade
que pode explicar a multiplicidade: para Tales é a água; para Anaximenes é o
ar; para Demócrito é o átomo; para Empédocles, os famosos quatro elementos, terra,
água, ar e fogo, teoria aceita até o século XVIII. Quando foi criticada por
Lavotsier.
3.
Mito e
filosofia: continuidade e ruptura
Já podemos observar a diferença entre o
pensamento mítico e a filosofia nascente: os filósofos divergem entre si e a filosofia
se distingue da tradição dogmática dos mitos oferecendo uma pluralidade de
explicações possíveis. Assim justificamos a perspectiva comumente aceita da ruptura
entre mythos e logos (razão).
No entanto, estudiosos como Cornford se
preocuparam em encontrar os elementos que, apesar das diferenças, mostrassem
como o pensamento filosófico nascente ainda tinha vinculações com o mito.
Segundo Vernant, Cornford observou que a física jônica é a expressão do
pensamento filosófico racional e abstrato, pois recorre a argumentos e não a
explicações sobrenaturais. No entanto, se a atitude do filósofo o distingue do
homem mítico, o conteúdo da filosofia permanece semelhante ao do mito, e dele o
aproxima. Por exemplo, Hesíodo relata na Teogonia como Gaia (Terra) gera
sozinha, por segregação, o Céu e o Mar; depois, a união da Terra com o Céu,
presidida por Eros (princípio de coesão do Universo), resulta na geração dos
deuses. Ora, examinando os textos dos filósofos jônicos, Cornford descobriu neles
a mesma estrutura de pensamento existente no relato mítico: os jônios afirmam
que, de um estado inicial de indistinção, separam-se pares opostos (quente e frio,
seco e úmido) que vão gerar os seres naturais (o céu de fogo, o ar frio, a
terra seca, o mar úmido), Para os filósofos, a ordem do mundo deriva de forças
opostas que se equilibram reciprocamente, e a união dos opostos explica os
fenómenos meteóricos, as estações do ano, o nascimento e a morte de tudo que
vive,4
**
4s.-p. Vemant. Mito e pensomento entre os
gregos, p. 297.
Portanto, na passagem do mito à razão, há
continuidade no uso comum de cenas estruturas de explicação. Na concepção de
Cornford não existe "uma imaculada concepção da razão", pois o
aparecimento da filosofia é um fato histórico enraizado no passado.
Embora existam esses aspectos de continuidade,
a filosofia surge como algo muito diferente, pois resulta de uma ruptura quanto
à atitude diante do saber recebido. Enquanto o mito é uma narrativa cujo
conteúdo não se questiona, a filosofia problematiza e, portanto, convida a discussão.
Enquanto no mito a inteligibilidade é dada, na filosofia ela é procurada. A
filosofia rejeita o sobrenatural, a interferência de agentes divinos na
explicação dos fenômenos.
Ainda mais: a filosofia busca a coerência
interna, a definição rigorosa dos conceitos, o debate e a discussão,
organizasse em doutrina e surge, portanto, como pensamento abstrato.
Na nova abordagem do real caracterizada pelo
pensamento filosófico, podemos ainda notar a vinculação entre filosofia e
ciência. O próprio teor das preocupações dos primeiros filósofos é de natureza
cosmológica de maneira que, na Grécia Antiga, o filósofo é também o homem do saber
científico. Só no século XVII as ciências encontram seu próprio método e
separam -se da filosofia, formando as chamadas ciências particular es (ver
Capitulo 14- A ciência na Idade Moderna).
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