Os outros animais, ao nascerem, recebem, em seu código
genético, tudo que é necessário para viverem neste mundo. O homem, ao revés, é
um ser incompleto, logo precisa ser EDUCADO para alcançar a excelência na forma
de agir. Para a elite grega, esse nível de comportamento, teria como
pressuposto o bom uso daquilo que caracteriza o homem, a RAZÃO, pois somente
com a utilização adequada desse instrumento ele seria capaz de controlar as
paixões e alcançar a EUDAIMONIA - que hoje, precariamente, traduzimos por
FELICIDADE.
E para a realização da eudaimonia Platão concebeu a
necessidade de a cidade ser JUSTA e os cidadãos VIRTUOSOS. Mas o exercício da
virtude exige que os homens utilizem corretamente a RAZÃO para não tomar o
ilusório como verdadeiro. E como a verdade é UNA, há de se supor que numa
cidade governada pelos mais aptos intelectualmente não haveria disputas
internas, nem partidos políticos, pois todos chegariam ao conhecimento da
realidade e aplicariam a justiça (bom governo).
Vê-se claramente que para falarmos da educação em Platão,
precisamos navegar pelo pensamento POLÍTICO, ÉTICO, EPISTEMOLÓGICO, PSICOLÓGICO
e METAFÍSICO do filósofo.
Do ponto de vista psicológico, a cidade justa não seria
norteada por princípios igualitários ou democráticos, mas seria dividida em
estamentos, de acordo com as características intelectuais de cada cidadão. Estas
características aflorariam de acordo com a parte da alma (dividida por Platão
em três) que preponderasse sobre as demais. Se a parte concupiscente se
sobrepujasse, o cidadão seria da classe dos artesãos; no caso de a parte
irascível se impor, o cidadão pertenceria à classe dos militares; já a
supremacia da parte racional da alma seria própria dos que deveriam exercer o governo
da cidade. Assim, cada um cumpriria com o que a sua vocação determinasse para
que o todo funcionasse como uma máquina bem aprumada. A preocupação do filósofo
é com a vida coletiva. Por isso a eudaimonia está para a vida pública, como a
felicidade (no sentido moderno) está para o ambiente privado.
Porém, mesmo sendo a realidade UNA e os sábios capazes de
intuí-la, o que garantiria que na cidade platônica não existiriam dissidências,
gerando partidos políticos e até uma guerra civil?
A resposta para essa questão tem cunho EPISTEMOLÓGICO e se
baseia no princípio da ética socrática, segundo o qual “CONHECIMENTO é
VIRTUDE”, isto é, quem conhece sempre age corretamente, na direção do BEM, com
vistas ao que lhe é proveitoso. Em outros termos, somente age mal quem ignora. Desta
forma, não existiriam desacordos políticos se os cidadãos, pelo menos os mais
aptos, fossem educados para o conhecimento da verdade, ou seja, se se tornassem
filósofos.
Ora, se os governantes-filósofos sempre agiriam no sentido do
BEM, Platão, em “A República”, dedicou-se a demonstrar como eles seriam capazes
de conhecer o real (a verdade) e assim não praticariam a injustiça pensando ser
a justiça, nem divergiriam sobre o que ela é. A demonstração disso constitui o
projeto pedagógico do filósofo.
A EDUCAÇÃO objetivaria formar o cidadão para a Pólis.
É oportuno lembrar que Platão viveu em Atenas, durante a
tirania dos trinta, logo após a guerra do Peloponeso e a queda de Péricles,
quando imperava a “democracia” como regime político. A sua crítica à Democracia
se deve tanto pela irracionalidade do sistema, como pelo individualismo e
espírito materialista que naquele momento imperava. Talvez por isso o espírito
coletivo de Esparta lhe tenha servido de modelo. Na cidade ideal o governante-filósofo
seria o agente capaz de fazer boas leis que garantiriam a harmonia e a
superação das contradições existentes.
Platão parte do fato de a atividade racional ser capaz de organizar
o pensamento com base em uma tradição, sempre com vistas ao UNO (que tem
caráter universal), logo se opondo ao pensamento que tem natureza PARTICULAR e
que se fundamenta nos interesses e nas conveniências humanas (Senso Comum).
Quem está em nível empírico compreende o certo e o errado em
termos do que dá LUCRO, do que faz BEM e do que é BOM para si próprio,
contrariando os objetivos coletivistas da filosofia platônica, que tem como
escopo o bem COLETIVO, enquanto o que sintetiza todos os interesses em um só.
Com o Mito da Caverna, que está no Livro VII de “A República”,
Platão explica como o indivíduo que está no mundo sensível (fundo da caverna) constrói
uma visão SECTÁRIA do mundo, na qual as coisas são vistas segundo os seus interesses.
Uma árvore, por exemplo, é vista a partir dos frutos, da sombra e da madeira
que propicia ao homem; jamais a partir da função que exerce no cosmos. Surge,
assim, um desrespeito pelas coisas do mundo, característico da visão demagógica.
No Mito, o projeto pedagógico/filosófico platônico é
representado pelo prisioneiro que se livra dos grilhões e sai da caverna
contemplando as coisas como elas, de fato, são. Essa passagem da alegoria
expressa a necessidade que o homem educado tem de abandonar o que provem dos
sentidos para, por um processo de anamnese ou reminiscência, contemplar a
realidade que está no mundo das formas.
Embora a contemplação da realidade exija um grau de abstração,
Platão não exclui da cidade o prazer (hedonismo), mas o coloca sob os ditames
da razão para que o seu exercício não alimente o sectarismo, que é um obstáculo
para a busca do BEM.
É oportuno lembrar que o BEM não deve ser compreendido no
sentido moral, mas ONTOLÓGICO, enquanto princípio que guia o homem na
contemplação do cosmo e cuja essência é o UNO, ou seja, o que reúne o múltiplo na
unidade. Isso significa que Platão antecipa aquilo que o homem moderno,
inexoravelmente, perceberá: que apenas há ciência (episteme) do UNIVERSAL. A opinião
(doxa) ou senso comum está adstrito ao particular.
Isso explica porque quem vive no âmbito empírico (do que
agrada) tende ao sofrimento, haja vista os objetos individuais/concretos estão sujeitos
ao DEVIR, logo o que é prazeroso hoje, certamente amanhã não o será. Já os
prazeres da alma são permanentes e estáveis por dependerem dos seres que estão
no mundo inteligível, que não se alteram por estarem ligados ao UNO.
O conhecimento verdadeiro (episteme) permite a ação virtuosa
na Pólis. Como visa o que é estável, permite harmonizar os diversos elementos que compõe o complexo
humano com vistas à JUSTIÇA, que se assemelha ao BOM e ao BELO. A cidade justa
é a cidade equilibrada. Aquilo que no “Protágoras” aparece como a virtude de
medir; em “A República”, Platão chama de a virtude da temperança, que é uma
espécie de ordem e de domínio entre os prazeres e apetites.
É nesse contexto que a cidade justa para Platão deve garantir
“aquilo que é devido a cada pessoa,
segundo a sua natureza”, posto que assim os homens, que não são iguais
do ponto de vista de suas potencialidades, possam exercer, na cidade, as
funções que melhor desempenham para o bem de todo o organismo social.
A EDUCAÇÃO, assim, possuiria um escopo político. Por isso ela
não deveria uniformizar os cidadãos, mas teria a função de fazer brotar aquilo
que a natureza de cada indivíduo permitir, de acordo com o interesse social. O
filósofo seria a expressão mais elevada desse ideal pedagógico, por ser o indivíduo
apto a guiar os demais para a contemplação do BEM (representado pela luz do sol
na alegoria da caverna).
Esse projeto, segundo Platão, estaria ameaçado pela ação dos
demagogos, que são indivíduos que não estão preocupados com a verdade
(episteme), mas com o que agrada (doxa, opinião), assim não estariam comprometidos
com a harmonia da cidade, mas visariam benefícios pessoais por meio da
manipulação das massas (os prisioneiros da caverna). Por esse motivo Platão
concebe a EDUCAÇÃO como uma atividade que tem um objeto específico, as FORMAS
(eidos), enquanto entidades que funcionam como modelos, paradigmas, por não
estarem sujeitas à mudança.
Mas as FORMAS somente são perceptíveis pelo intelecto. No
mundo inteligível existiriam formas de objetos concretos, valores morais e
estéticos, e até de entidades matemáticas. Assim, a frase “o dedo indicador é
grande” está correta quando o dedo indicador é colocado diante do dedo mínimo,
mas não se mantém correta quando o dedo indicador é posto diante do dedo médio.
Isso prova que dependendo do contexto o dedo indicador poderá ser pequeno ou
grande, logo não se pode adquirir conhecimento quando se trabalha com elementos
particulares e sensíveis, cujo resultado, dependendo da situação, oscila. O
conhecimento, neste caso, reclama pela busca da forma da grandeza. Da grandeza
em si.
Para explicar o processo de educação dos que seguirão para o
conselho dos sábios, Platão, no Mito da Caverna, faz as distinções entre o
mundo INTELIGÍVEL e o mundo SENSÍVEL. Este mito relata que os homens estariam
no mundo sensível, que não é uma realidade perfeita. Andam, comem, dormem –
assim vivem no mundo que é continuamente mutável, do fluxo das alternâncias,
mas podem, se tiverem um treinamento adequado, captar o que está na realidade
não sensível, no mundo real daquilo que não muda: o lugar das formas
A pedagogia filosófica é, portanto aquela que impulsiona o
homem aos UNIVERSAIS, tomando-se como real, sabendo, então, que o sensível,
ainda que existente, é ilusório. Esse processo se iniciaria com o estudo da
matemática e alcançaria um grau maior de abstração na dialética, que, segundo
Platão, viabilizaria a visão das formas.
Sem o amparo do conhecimento das formas, que são entidades
objetivas (não devemos confundir com os pensamentos humanos, que são subjetivos),
surge um campo favorável a atuação dos demagogos. Neste momento, o critério utilizado
não é o de quem sabe, mas o de quem agrada, o que, no campo político, objetiva
angariar o apoio da maioria pelo viés do que é conveniente, porém transitório.
Não é difícil entender porque Platão não simpatizava com a Democracia,
onde o critério para as decisões é o da maioria, logo um campo fértil para a manipulação,
onde as ações visam o que AGRADA a maioria. Nesse regime a racionalidade não
determina as ações necessárias para o bom funcionamento da cidade, mas vence o
pensamento que atende aos interesses da maioria. É previsível, nesse contexto,
que as coisas tendam ao caos, facilitando o aparecimento do SALVADOR DA PÁTRIA,
ou seja, do tirano.
Em contraposição, Platão considera a EDUCAÇÃO como
instrumento de resistência a toda sorte de controle social pelas ações
demagógicas. Se as pessoas pensassem por conta própria, tirando de dentro de si
mesmas a compreensão das coisas do mundo, não se moveriam por INTERESSES, mas
por PRINCÍPIOS racionais, e, como os filósofos, seriam guiadas pela idéia suprema
do BEM.
No prisma da visão totalizadora do pensamento platônico, tudo
que une é bom e tudo que separa (sectarismo) é ruim. Assim, EDUCAR é tirar de
dentro o conhecimento. Ver as coisas como são. Jamais como queremos que sejam.
Platão não separa a filosofia da política, da pedagogia e da arte, porque
educar é fazer com que cultivemos aquilo que é próprio dos seres humanos, isto
é, o pensamento racional, como condição para uma vida gregária equilibrada.
Excelente texto! Me auxiliou bastante, tornando bem claro o conceito pedagógico de Platão! Obrigado!
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