sábado, 31 de março de 2012

A excomunhão da tolerância (Ou: “A verdade é aquilo que a maioria acha que é”)

Ganhou larga publicidade em nível nacional a excomunhão dos médicos que realizaram, com autorização judicial, um aborto numa menina de 09 anos, vítima de estupro, em Pernambuco. A mãe da infante também foi apenada pela igreja católica com a mesma sanção.

Até o ministro da saúde, José Temporão, e o presidente da república, Luis Inácio Lula da Silva, concordaram com a decisão da família da vítima em dar crédito à teoria científica (expressa pelos saberes médico e jurídico) e criticaram o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, autoridade religiosa anunciador da pena eclesiástica.

Não pretendo, neste lacônico artigo, dizer quem tem razão nessa demanda entre o conhecimento científico e religioso, mas suscitar alguns pressupostos teóricos sobre o tema, capazes de nos ajudar a pensar sobre a questão proposta.

O Estado brasileiro é laico, secularizado ou profano, isto é, independente do poder da igreja. Essa independência é característica do Estado Moderno ocidental. A classe burguesa precisava, no início da modernidade, sair do jugo do Estado Medieval - personalizado na figura real - e da igreja. A igreja legitimava o poder real, concebendo-o como expressão da vontade de Deus. Nesse momento histórico Igreja e Estado tinham estreitas relações.

Por outro lado, os impostos e o pagamento de indulgências penalizavam a classe emergente. Sob o manto de um novo corpo teórico racionalista (amparado por uma filosofia e ciência modernas) surgiu esse novo Estado cujo poder é explicado não mais como a expressão da vontade divina, mas resultante de um grande PACTO, ACORDO ou CONTRATO. O seu fundamento agora é humano. Por essas e outras razões o Estado Moderno se “divorcia” da igreja e as explicações que nele vicejam não possuem mais um caráter divino ou mágico.

A ciência, “filha” do Estado Moderno, passa a ser considerada a conquista maior da racionalidade humana. As explicações empíricas, religiosas ou filosóficas são ofuscadas pelo seu poder embriagante. È compreensivo que hoje confiemos a solução de grande parte dos nossos problemas ao saber científico. A ciência se transformou em um mito. Por isso, não sem razão, o povo brasileiro aquiesceu à explicação da Medicina e do Direito, refutando a posição da religião. Logo o presidente Lula, como bom político que é, se alinhou ao pensamento institucionalizado em nossa cultura.

Hoje, o entendimento preponderante no mundo acadêmico dá conta que as teorias científicas não são absolutas ou verdadeiras, mas explicações provisórias e limitadas da realidade, principalmente no campo das ciências humanas, como é o caso da Medicina e Direito. Em outras palavras, admite-se que os médicos e os juízes erram. Mas, o homem em nível de senso comum, por não submeter o saber científico à devida critica, ainda o tem como verdadeiro. Eis a razão da quase totalidade do povo brasileiro concordar com a decisão da família da menor em optar pelo aborto.

Por outro lado, o religioso (arcebispo de Olinda e Recife) agiu amparado, como era de se esperar, na teoria religiosa que tem como fundamento a revelação da verdade por um Deus todo-poderoso. Neste caso não há muito que fazer para quem acredita na revelação divina (a teoria sempre será verdadeira porque quem a dita é a autoridade religiosa). Se se acredita que é Deus quem fala aos homens, a sua palavra será sempre concebida como verdadeira. Por essas razões Dom José Cardoso Sobrinho agiu corretamente do ponto de vista do saber religioso. No conflito entre o discurso humano e o divino, o último, para quem tem fé, prepondera.

Eis que subjaz ao dilema instituído a marca da intolerância humana com o outro (com a maneira de pensar alheia). A verdade não está nas coisas, mas, supostamente, nas teorias e não há como asseverarmos qual delas é a melhor. Filiamo-nos a esta ou aquela posição em razão das crenças que possuímos de que a verdade é acessível ao intelecto humano, coisa que somente a posição ingênua é capaz de admitir.

Essa discussão não faria sentido se a igreja estivesse embricada com o Estado, como ocorre em boa parte dos países orientais. O que é absurdo para um, pode ser normal ou coerente para o outro. Se fossemos indianos, chineses, russos ou integrantes de uma tribo indígena não aculturada, a resposta para a gravidez da menor e o conseqüente aborto seria, com certeza, diferente.

Moral da história: A “verdade” varia em razão das condições históricas, geográficas, psicológicas, culturais, etc. A melhor resposta será sempre aquela que a maioria – por uma razão qualquer - entender que é.

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