
Os antigos não dispunham de telescópio e outras engenhocas
para examinar o espaço celeste, o que certamente contribuiu para que pensassem
o cosmos como um todo HARMÔNICO, ORGANIZADO, INTELIGENTE, FINITO, ETERNO,
ANIMADO e DIVINO, cujas partes se relacionam, se determinam, se complementam e
mantém o equilíbrio de um sistema lógico e perfeito. Nenhuma parte dessa grande
engrenagem existe por acaso. Cada uma tem um papel e quando uma delas não
funciona bem, o todo é afetado, porém, como um ser INTELIGENTE, o cosmos possui
a capacidade de se auto harmonizar, restabelecendo o equilíbrio e a ordem
temporariamente perdidas.
Os atributos do cosmos, especialmente a ORDEM e a HARMONIA, o
levariam a condição de ente DIVINO, mas para o ser humano alcançar a percepção
dessa perfeição, segundo os filósofos estoicos, seria necessário recorrer à teoria – que etimologicamente significa “eu vejo o divino”. É nesse nível de abstração
que o homem poderia perceber a ordem “lógica” e subjacente (estrutura interna) desse
grande “ser vivo”, mas, se, ao revés, os homens fossem guiados exclusivamente pela
sensibilidade, poderiam intuir apenas partes ou fragmentos do cosmos, o que certamente
os faria confundir uma desordem e instabilidade localizada e passageira, como um
atributo geral e permanente do todo.
Como ente FINITO, o
cosmos abarca a totalidade dos seres. Mesmo os deuses não o transcendem, mas o
incorporam, na medida em que existem nele e concorrem para fazê-lo harmônico e
organizado. Podemos compará-lo a uma grande máquina bem azeitada, cujas peças
cumprem funções bem específicas e garantem o bom funcionamento do todo. Não há
nada fora do cosmos. Ele é o início, meio e fim de tudo que existe para os
antigos.
Mas, para que a harmonia cósmica possa se efetivar cada ser
tem de cumprir o papel que lhe cabe nesse grandioso sistema, afinal as funções
individuais devem sempre se subordinar e concorrer para o bom funcionamento do
todo. É nesse contexto que surge o drama humano, como único ser que desconhece
o seu papel na engrenagem cósmica (ver o mito de Prometeu e Epimeteu), logo,
segundo os antigos, temos o dever de tentar descobrir e exercer o nosso papel
para colaborarmos com a harmonia cósmica e alcançarmos a eudaimonia.
Do ponto de vista da teoria estoica, o cosmos é, pois, com
exceção de alguns episódios acidentais e provisórios que são as catástrofes,
essencialmente HARMÔNICO, o que, em certa medida, o fará servir de modelo
ético, político e estético para os homens. Marco Aurélio, por exemplo, pensa
que a natureza faz justiça a cada um, tendo em vista que ela nos dota, quanto
ao essencial, daquilo de que precisamos: um corpo que permite que nos movamos
no mundo, uma Inteligência que possibilita nossa adaptação a ele, e riquezas
naturais que nos bastam para nele viver. De modo que, nessa grande partilha
cósmica, cada um recebe o que lhe é devido.
Essa teoria do justo anuncia uma fórmula que servirá de
princípio a todo o direito romano: “dar a cada um o que é seu”, colocar cada um
em seu lugar – o que supõe que exista, como diziam Platão e Aristóteles, para
cada ser um “lugar natural”, e que o próprio cosmos seria justo e bom. É,
segundo os estoicos, justamente a teoria que nos permite capturar o que há de
mais perfeito e “real” no mundo (sua harmonia e ordenação), visto que a
sensibilidade fica restrita a parte, que é defeituosa e quebradiça. É esse trabalho
abstrato que, mais tarde os filósofos chamarão de Ontologia e Teoria do
Conhecimento, que não são ciências particulares como a Biologia, Astronomia,
Física ou Química, porque, embora recorra constantemente a essas ciências positivas,
ela não se interessa pelos seus objetos particulares, mas tenta capturar a essência
e a estrutura interna da totalidade do mundo.
Bibliografia:
- Ferry, Luc. Aprender a Viver: filosofia para novos
tempos/Luc Ferry;
Tradução Vera Lúcia dos Reis. – Rio de Janeiro: Objetiva,
2012.
- Ferrreira, Leonardo Zoccaratto. Como perdemos nossos ideiais?
Clube de autores – São Paulo, 2012.