Ganhou publicidade em nível nacional a insólita “operação” realizada por policiais militares do Pará na qual três jovens, detidos por “suspeição”, foram obrigados a dançar o conhecido axé music “Rebolation”, em plena via pública (http://www.youtube.com/watch?v=fhbXZ_9t-_Q). O fato, ocorrido em um bairro periférico da cidade, foi filmado e divulgado na internet. Em que pese o “espírito artístico” dos militares, resta claro que não é função da polícia submeter jovens, mesmo que infratores, a esse tipo de “treinamento”. E depois, segundo informações de fontes confiáveis, Carlinhos de Jesus ainda não faz parte dos quadros da PM de Fontoura.
Em nome da Administração Pública, o digno corregedor PM, estupefato, declarou que a conduta dos militares foi inadmissível e que uma sindicância a elucidará. Do ponto de vista legal, não parece existir dúvida de que os PMs agiram incorretamente, razão pela qual, neste artigo, priorizarei a análise moral e psicológica do evento. Deter-me-ei, portanto, nos possíveis motivos que mobilizaram os policiais à inusitada “aventura artística”. Afinal é, no mínimo, instigante pesquisar as causas que os levaram a submeter os adolescentes a uma prática que, certamente, sabiam ser ilegal.
Usarei aqui a estratégia de, inicialmente, levantar uma hipótese para depois tentar verificar a sua validade. Partirei da crença de que as causas das ações dos “professores de dança” milicianos são semelhantes as que inspiram os ímprobos gestores (e políticos) da nossa res-pública tupiniquim a inobservarem a lei: o espírito patrimonialista que prepondera na seara pública brasileira.
O patrimonialismo é o entendimento político de quem não faz distinção dos limites entre o público e o privado. Como o termo sugere, o Estado acaba sendo um “patrimônio” de quem o representa. No Brasil, essa forma de pensar e agir na vida pública remonta ao Estado colonial português, quando o processo de concessão de títulos, terras e poderes, quase absolutos aos senhores de terra, legou à posteridade uma prática político-administrativa em que o público e o privado não se distinguem perante as autoridades.
O mais interessante é que apesar dessa malevolente e flagrante influência histórica, nem os jovens professores do “rebolation”, nem os velhacos corruptos da res-pública, admitiriam que suas ações foram inspiradas ou motivadas pela incapacidade de distinguirem entre o que lhes é permitido como sujeitos individuais, do que lhes é permitido como agentes públicos. Poderiam até intuir intelectualmente essa distinção, mas certamente não a identificariam com suas ações. Esse fenômeno comportamental, característico da modernidade, é fruto da dificuldade natural que o homem possui em representar um outro papel na sociedade, cujos atos devem ser rigorosamente regulados pela razão. Todo filósofo sabe que a razão é o que menos guia o homem em sua vida cotidiana. Aliás, se assim fosse, a vida se tornaria insuportável. Essa modificação imposta pelo discurso não encontrou respaldo nas inclinações, propensões e paixões humanas, fazendo da IMPESSOALIDADE algo que não encontra eco na vida.
Esse conflito entre a universalidade do pensamento e a particularidade da conduta humana, possui suas raízes no pensamento ético do filósofo Immanuel kant. O sistema kantiano considera o sujeito transcendental (o que está além dos indivíduos particulares) capaz de absorver a norma geral e abstrata, comportando-se segundo as suas prescrições. Como todos nós participamos desse sujeito universal, na medida em que fazemos uso da razão, também seríamos capazes de intuir essa lei e agir em consonância com ela. O Direito brasileiro se inspirou em Kant ao pensar a relação do homem com a norma enquanto obrigação. Devemos, assim, agir por DEVER, jamais por PRAZER. Desta forma, o filósofo alemão dá um "golpe de morte" no patrimonialismo ao sustentar que a verdadeira ação moral deve estar alinhada à norma, não ao sujeito. Em tese, essa forma de pensar a conduta do homem em sociedade é perfeita e conveniente ao Estado moderno burguês; mas, na prática, se apresenta como um baita problema, a ponto de, a reboque, tornar necessária a criação de mecanismos estatais de coação externa para obrigar os jurisdicionados ao fiel cumprimento da lei.
A ética kantiana privilegia o sujeito autônomo, ou seja, aquele indivíduo que não age segundo as paixões. A razão é o azimute. Neste caso, quase contraditoriamente, ser livre é obedecer o que a norma universal (imperativo categórico) estabelece: "Aja somente em concordância com aquela regra através da qual tu possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal". Nesta ótica, a ação humana deve desprezar toda e qualquer inclinação pessoal. O ordenamento jurídico brasileiro absorveu esse raciocínio, consagrando-o como princípio a ser observado por todos os agentes públicos no exercício do cargo. Assim surgiu o quase quimérico COMPORTAMENTO IMPESSOAL. Esse entendimento, por exemplo, faz do nepotismo uma prática inadmissível na seara pública, mas plenamente justificável na privada.
Mas agir com impessoalidade não é coisa fácil. Se fosse regra, não precisaríamos criar tantos mecanismos de controle dos agentes públicos em nosso país, como a recente “Lei da transparência”, que tornou obrigatória a publicação em ”tempo real” (o que é isso?) de todos os atos administrativos dos entes estatais. O homem criou um ser imaginário e agora tenta mantê-lo vivo. Para isso, não mede esforços em combater os mais íntimos desejos humanos. Algo semelhante ocorre com o Cristianismo, que possui como regra maior a “lei do amor”, mas que, à semelhança da máxima kantiana, também não vingou na prática. Dar a outra face é algo pra bobo em nossa cultura, embora não digamos que Jesus Cristo está errado ao defender a amizade como princípio.
O conflito permanente entre a lei abstrata e a ação concreta tem sido um dos grandes desafios humanos desde o surgimento da metafísica na Grécia antiga. Pensar a ação e realizá-la, contrariando toda sorte de desejos, ainda é um problema e tanto para a espécie humana. Todos sabem, por exemplo, que batata frita, sorvete e refrigerantes não são alimentos saudáveis, mas quem, negando a própria vontade, os evita? Porém, a transgressão aos princípios alimentares afeta a realidade individual; a inobservância às normas legais, a coletiva. E é o coletivo que salta aos olhos quando analisamos a ação dos agentes estatais.
Por isso, os PMs – como qualquer agente público ímprobo – ao submeterem os adolescentes à vexatória prática, impondo-lhes castigo que ao bel prazer julgaram conveniente, desrespeitaram a norma universal e demonstraram não ser capazes de, no exercício do cargo público, conter as suas inclinações. Em vez de, simplesmente, aplicarem a lei, agiram para satisfazer os próprios sentimentos. Creio até que, se tivessem bom gosto, teriam escolhido uma canção do Tom e Vinícius para servir de fundo musical. Essa reprovável conduta (para nós modernos) é fruto do permanente conflito entre o individual e o público, cuja distinção os agentes estatais - e a própria sociedade civil - ainda não compreenderam, o que faz do espírito patrimonialista um verdadeiro patrimônio brasileiro.
Diz a lenda que o rei Luis XIV costumava afirmar: “O Estado sou eu!”. Já os nossos ilustres policiais paraenses, sem os mesmos títulos de nobreza, em pleno século XXI, precisam aprender que eles são uma coisa e o Estado outra, sob pena de terem, de fato, que dançar o "melô da corregedoria": "Processetion, processetion, processetion!".
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