sexta-feira, 22 de abril de 2011

Dr House, Maquiavel e a Técnica Policial Militar (ou "A vida não é uma teoria")



Em entrevista concedida ao Jornal Liberal 2ª edição, no dia 17 de dezembro de 2009, o tenente coronel PM Sandoval Bittencourt, comandante do Batalhão de Policiamento Tático da Polícia Militar do Estado, afirmou que a guarnição PM que administrou um assalto com refém, ocorrido no mesmo dia, no centro da capital marajoara, agiu corretamente. A ocorrência resultou em duas mortes e cinco feridos. Bittencourt, para sustentar a sua análise, se baseou no que prescreve a técnica policial militar em situações de gerenciamento de crise: conter, estabilizar e negociar.

Não vou, neste artigo, analisar se os policiais observaram (ou não) a técnica PM como afirmou o tenente coronel, mas se os cânones militares devem – ou quando devem – ser cumpridos, em situações reais de conflito. Parto do pressuposto que a atividade policial é de risco, não suicida.

A análise de Bittencourt, como toda análise, parte de um porto seguro. No caso, o referencial é a doutrina que regula a ação policial nessas ocasiões. Se o oficial fosse um advogado, buscaria amparo teórico em alguma lei, doutrina, jurisprudência ou até em outros ordenamentos jurídicos pátrios. Assim o pensamento opera, no dia a dia, quando analisamos algo. Dizemos que uma mulher é bela porque temos um pressuposto de beleza que orienta a nossa avaliação. É como as formas perfeitas platônicas que estão no mundo das idéias, a partir das quais reconhecemos as imperfeitas que estão no mundo sensível. Por isso é difícil refutar alguém que tenha alguma habilidade com as palavras. A teoria justifica a própria teoria.

Mas quando falamos na conduta humana, podemos nos socorrer de "outros olhares" sobre a mesma questão. Maquiavel, por exemplo, - que para alguns é o maior pensador ético de todos os tempos – não se aferrava a princípios, normas ou valores quando examinava a ação. O RESULTADO é que o vale. O filósofo não desprezava os “modelos” reguladores do comportamento, mas, concomitantemente, não se sentia preso a eles. O caso concreto deve “determinar” a forma de agir.

O que importava para Maquiavel era a capacidade do homem em superar as adversidades (Fortuna). Essa qualidade o filósofo chamou de VIRTÚ - não devemos confundir com a palavra virtude, no sentido da moral profana ou cristã –, que é a qualidade de quem é viril e assume as rédeas da ação, logo capaz de superar os imprevistos que determinam os acontecimentos do dia a dia. Como o resultado é o que interessa, pouco importa a observância às regras ou princípios absolutos cristãos ou profanos.

Partindo desses pressupostos, não é difícil supor que, pelo trágico desfecho da ocorrência policial, Maquiavel diria que a guarnição PM errou na ação e Bittencourt, na análise. Afinal, duas pessoas morreram e cinco saíram feridas.

Antes de qualquer coisa, para o filósofo florentino, é preciso determinar o fim que se quer alcançar. Em seguida, empregar todos os meios disponíveis, que a razão é capaz de prescrever, para alcançá-lo. É permitido, se for necessário, utilizar meios considerados ilícitos e imorais para atingir o objetivo estabelecido.

Na ação policial em exame qual deveria ser a prioridade a ser perquirida? Penso que o bem maior é a preservação da integridade física da refém, dos policiais e demais pessoas envolvidas na ocorrência. Depois, se fosse possível, dever-se-ia prender os meliantes. Nesse caso, a estratégia policial deveria visar esse resultado, mesmo que precisasse desobedecer a preceitos da Técnica Policial Militar. Toda ação deveria levar em consideração os seus efeitos prováveis. Não nos esqueçamos que uma ação bem intencionada e em consonância com a técnica policial pode produzir conseqüências desastrosas.

O bom agente, para Maquiavel, deve ter sabedoria na ação e adaptar-se aos acontecimentos com os quais se depara, mesmo que precise desprezar a forma convencional de agir.

Penso que um bom exemplo para compreendermos os ensinamentos do mestre florentino reside na arte cinematográficato: Dr House. A série norte americana tem como personagem principal um médico infectologista e nefrologista que diante de casos incomuns elabora excelentes diagnósticos. House ao pesquisar a solução dos intrigantes casos, se necessário, utiliza métodos pouco ortodoxos e até em desacordo com a ética médica. Esses procedimentos controversos causam desconforto e são reprimidos pela direção do hospital, mas, no final, todos se curvam ante os inquestionáveis resultados obtidos pelo médico. House, como prescreveu Maquiavel, não está condicionado ao dogmatismo da sua profissão, mas age como um exímio investigador que, para cada caso concreto, busca a melhor terapia com o objetivo de alcançar o fim proposto: a saúde dos seus pacientes.

House é um médico irreverente como os artistas. Não usa jaleco branco, está sempre com a barba por fazer, toca guitarra, é anti-social e é viciado no medicamento chamado vicodin, com o qual tenta controlar a dor que possui em razão de uma operação mal sucedida em sua perna direita. Esses elementos que compõem a estética da personagem principal da trama evidenciam a tentativa de romper com a estrutura rigorosa e fechada que o senso comum tem do cientista, como alguém que não pode fugir do padrão imaginário que em torno dele é construído.

Apesar de tudo, House não desconsidera os princípios da medicina convencional e consulta sempre que pode o seu único amigo, dr Wilson, quando perquire a solução de um caso. Mas não se furta, quando necessário, em desobedecer aos cânones de sua profissão ao elaborar prescrições excêntricas, impressionando a todos com a velocidade e destreza dos seus diagnósticos, afinal seu compromisso é exclusivamente com o resultado da ação.

Não resta dúvida que o comandante Bittencourt – que é um dos oficiais mais competentes da briosa corporação –, durante a entrevista, agiu como estadista e gestor público ao prolatar o "discurso da normalidade", com o claro fito de defender os interesses do governo, que é o patrão. O oficial, que é doutorando em sociologia, sabe que a ação policial foi equivocada, porque, pelo resultado, não é difícil inferir que o remédio ministrado foi inadequado. Depois que o paciente morre, os responsáveis pelo tratamento nunca admitem que podiam ter feito algo mais para superar a fortuna. Empenam-se em elaborar discursos com o indisfarçável propósito de livrar a própria pele, sem qualquer compromisso com a "verdade" dos fatos. Talvez, por isso, devamos aprender com as divagações do filósofo renascentista e as excentricidades da personagem da teledramaturgia norte americana, a desconfiar de quem, entre a vida e a teoria, se esquece que a primeira sempre será a mais importante.

O pensamento ético de Maquiavel (ou "A ética consequencialista")



É lugar comum pensar que Maquiavel sentenciou a separação entre moral e política ao admitir a possibilidade de o sujeito praticar ações contrárias às prescrições da moral socialmente aceita. Esse entendimento, porém, carece de uma melhor análise, na medida em que o filósofo, em momento algum de sua abra, postulou contra a moral baseada em princípios, seja de inspiração socrática-platônica ou cristã. Ele apenas defendeu uma moralidade diferente voltada à superação das adversidades em determinadas situações concretas. Essa nova moralidade se baseia em valores como a coragem, vigor, fortaleza, disciplina, felicidade, força, justiça, liberdade, etc.

Em Platão e Aristóteles a moral é fim em si mesma; em Maquiavel, é meio para a realização de uma vida próspera, porém com claro escopo social. O filósofo não prescreveu que tais condutas devessem ser adotadas na vida privada.

A perspectiva de Maquiavel é pragmática. Ele não se preocupou em inverter os cânones da moral cristã. Ele apenas percebeu que o cristianismo tornara os homens inaptos para a vida terrena. Em sua análise histórica, procurou demonstrar que uma moral baseada em princípios absolutos não seria útil para a edificação de sociedades sólidas. Os antigos foram a sua inspiração, principalmente os romanos.

A virtude consistiria na realização de grandes feitos, jamais na contemplação passiva das coisas deste mundo. Nesse contexto, a religião não seria um problema, desde que não estimulasse valores que prejudicassem o exercício da VIRTÙ, compreendida como a capacidade de o homem superar a FORTUNA (adversidades decorrentes do que chamamos de azar, acaso, imprevisto, sorte, falta de sorte, etc.).

Virtù e Fortuna não são expressões próprias de Maquiavel. Já existiam na Grécia e Roma antigas. Para os romanos a Fortuna era representada de três formas distintas: na primeira delas o chifre da riqueza – a cornucópia -, do qual jorram, quando soprado, moedas de ouro; na segunda, segurando o timão de um navio; na terceira, ao lado de uma roda.

Depreende-se dessas imagens que a deusa Fortuna dispõe de grande poder sobre a vida dos homens, podendo alterar o curso dos acontecimentos (aproxima-se, nesse ponto, da noção de destino). Sua juventude e feminilidade indicam o seu caráter inconstante, caprichoso, voluntarioso e traiçoeiro. Mas indica igualmente a possibilidade de conquistá-la, de possuí-la, para o que é preciso força, virilidade, virtude.

Essas figurações indicam que a vida humana é afetada por forças que a transcendem, assinalando a consciência dos limites da ação humana, uma vez que o seu sucesso (ou malogro) depende de uma vontade, em princípio, alheia ao agente.

Mas o homem, segundo o filósofo, é livre para agir, mesmo que o desfecho das suas ações não esteja assegurado e que algo sempre escape ao controle. Isto é, mesmo que a realidade não possa ser integralmente submetida à vontade humana. O poder da Fortuna está sempre presente, mas é variável, logo pode ser maior ou menor de acordo com a resistência que encontra. Em Maquiavel essa resistência ganha o nome de Virtù.

Virtù não deve ser compreendida como uma simples qualidade humana, pois pode também implicar em seu contrário (ausência de qualidade), visto que se trata de uma ação que deve responder à necessidade, conforme as circunstâncias. Um homem dotado de Virtù seria aquele capaz de se livrar de certas qualidades quando fosse o caso, adotando as contrárias se a situação concreta exigir. Por esse motivo o príncipe ideal de Maquiavel seria um homem sem qualidades, na medida em que, não possuindo nenhuma, as possuirias todas.

A moral maquiaveliana está alinhada com os RESULTADOS da ação. Os atos abstratos, bons ou maus, não interessam do ponto de vista moral, mas apenas os concretos. Ele preconiza uma ética voltada para os FINS da ação, que leva em conta sempre as CONSEQUÊNCIAS prováveis dos nossos atos. Uma ética baseada em princípios (bondade, misericórdia, lealdade, humildade, etc.) estaria fadada a levar o homem ao insucesso em seus empreendimentos.

Mas o filósofo não proclama o desapego às qualidades da moral cristã, como a bondade, piedade, lealdade e justiça, apenas que não devemos ser escravos desses predicados a ponto de permitir que eles influenciem as nossas ações com vistas à realização do bem comum. A ação deve ser norteada sempre pelo senso de responsabilidade e eficácia.

Partindo dessas premissas, Maquiavel propõe a principal questão de sua ética: como devemos estabelecer um trajeto moral para enfrentar as adversidades (FORTUNA) e eventualmente vencê-las? Essa proposição parte do pressuposto que pelo menos metade das condicionantes que determinam os acontecimentos humanos não está sob o nosso controle, logo devemos nos comportar com VIRTÚ, assumindo as rédeas da ação, para impedir a manifestação das consequências ruins e garantir a prosperidade.

Como foi dito alhures, o homem que assume as rédeas da ação deve, como o príncipe, não estar submetido a nenhuma autoridade superior, seja de ordem moral (cristã) ou física. Como ele não tem o controle de todos os acontecimentos deve ter o poder de não cumprir com acordos firmados, mentir ou, até mesmo, faltar com a verdade, se for necessário para superar a fortuna. Neste caso, a “consciência moral” também não deve funcionar como uma autoridade sobre si mesmo. Como a fortuna é imprevisível e pode provocar coisas boas ou más é necessário pensar na melhor maneira de agir. Surge, neste momento, a idéia de PLANEJAMENTO e ESTRATÉGIA. Deve-se utilizar a razão para antever os riscos e superá-los.

Mas o grande problema para a efetivação da ação sábia, segundo Maquiavel, está na própria natureza humana. O homem sábio na ação ele chama de PRUDENTE (não no sentido de cautela, comedimento, etc.), ou seja, é aquele que governa a ação com vistas ao melhor resultado. Há duas formas de manifestação da prudência: cautela e audácia.

O prudente, para o filósofo, deve agir ora por cautela, ora por audácia. Ele não deve se deixar levar pelas suas inclinações ou características pessoais, mas deve ser capaz de adaptar o seu modo ser às adversidades. Em caso de dúvida é preferível ser AUDAZ, porque a fortuna é mulher e prefere os audazes. É nesse contexto que a natureza humana surge como elemento complicador da ação, posto não ser fácil agir como as circunstâncias determinam, desprezando a própria maneira de ser.

Em Maquiavel a ação humana segue um novo azimute. Segundo ele, uma ética que se baseia em princípios não pode ser levada a sério. A conduta que se preza deve se preocupar com os resultados, com os efeitos prováveis. Uma escolha deve sempre levar em consideração as CONSEQUÊNCIAS.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Os Pré-Socráticos (ou "Os filósofos da natureza")


Quando aparecem, na Grécia antiga, por volta do século VI a.C., os primeiros filósofos de que se tem notícia, preponderava o mito como forma de conhecimento. Tudo era explicado a partir da ação de forças extraordinárias e sobre-humanas. A vontade de um deus, por ação ou omissão, era concebida como CAUSA dos acontecimentos do mundo natural.

Apesar de os relatos míticos constituírem uma COSMOGONIA, ou seja, uma explicação sobre a origem dos fenômenos naturais pela ação de forças superiores e mágicas, ele já possuía em sua estrutura interna elementos racionais, com os quais a filosofia nascente iria trabalhar. Essas histórias tratavam, dentre outras coisas, de questões sobre a origem e destino de tudo o que existia, pressupondo relações de CAUSA e EFEITO, todavia não explicavam os fenômenos em termos universais, mas como nascimento de algo específico, numa relação de pai para filho. Mesmo assim, essa forma de abordar a realidade evidenciava que “há algo de razão no mito, como há algo de mítico na razão”.

Mas os gregos não pensavam a NATUREZA como os modernos, ou seja, como algo organizado, que se comporta com certa regularidade e que é regido por leis. Eles pensavam em PHYSIS, enquanto semente, aquilo que brota por si mesmo.

Os filósofos Pré-Socráticos não acreditavam na CRIAÇÃO do cosmo. Para eles, existiria um elemento eterno (arché) que seria uma espécie de princípio ou fundamento de tudo o que existe. Ante a diversidade e multiplicidade do cosmo, subsistiria algo que funcionaria como regra do mundo, ou seja, que ditasse o comportamento da natureza de forma constante. Apesar de o conteúdo de suas idéias já terem sido, de certa forma, superados, a validade de suas especulações reside, principalmente, no ROMPIMENTO COM A EXPLICAÇÃO DIVINA DO COSMO ao procurarem, cada um a seu modo, explicar os fenômenos naturais usando a observação e a lógica.

Ocorre que subsistem apenas fragmentos do pensamento desses filósofos, preponderando o que chamamos de TRADIÇÃO DOXOGRÁFICA, isto é, aquilo que outros filósofos e historiadores disseram sobre eles. Dessa forma o pensamento dos Pré-Socráticos chegou até nós.

Sobre o pensamento filosófico de alguns Pré-Socáticos:

1 - Tales de Mileto: Para Tales o princípio, “arché”, de todas as coisas era a ÁGUA, na medida em que tudo no mundo natural funcionaria como a água. As coisas mudam de estado como a água muda. Possivelmente este filósofo inferiu esse princípio pela observação dos fenômenos naturais. Deve ter percebido que o quente vive com o úmido, as coisas mortas ressecam, as sementes de todas as coisas são úmidas e o alimento é suculento. Onde há água, há vida. Mas não devemos considerar que Tales concebia a ÁGUA como um elemento químico, mas alquímico e simbólico, como, aliás, era a característica da arché de todos os Pré-Socráticos.

2 – Anaxímenes de Mileto: A arché era o “AR”, com os seus atributos. A infinitude e o movimento incessante do AR seriam o fato gerador da multiplicidade das coisas e se daria por meio da rarefação e condensação. Por condensação o AR se transformaria em água, depois em terra, e em elementos cada vez mais sólidos da natureza. Por rarefação, em fogo.

3 - Anaximandro de Mileto: Pesava na arché como um elemento menos determinado que a água ou o ar. Por isso o chamou simplesmente de INDETERMINADO ou ÁPEIRON. O Apeíron não é uma coisa concreta, algo tangível, mas etéreo. É a superação dos opostos e da individualidade. O grande mérito deste filósofo foi desenvolver um processo de abstração, ou seja, pensou num princípio da physis que não estivesse visivelmente presente no mundo sensível.

4 – Pitágoras de Samos: A essência do universo era numérica, a UNIDADE ou o elemento unitário (números inteiros). O único número que existe é o UM, pois ele engloba tudo o que integra o cosmo. Todos os outros números são ilusórios, na medida em que as coisas existem enquanto unidade. O universo, portanto, estaria em perfeita harmonia e as relações numéricas seriam capazes de desvendá-lo. Pitágoras contribui para a espiritualização da filosofia, na medida em que a arché não é mais concebida como um elemento tangível.

5 – Parmênides de Eléia – Filósofo que rompeu com a visão do senso comum ao lançar as bases da metafísica (o que vem depois da física). Ele afirmou que "O SER É E O NÃO-SER NÃO É”, ou seja, uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Logo, este filósofo nega o movimento e a transformação do mundo. Ele identifica as coisas que existem com o pensamento, negando o que é apreendido pelos sentidos. O espaço e o tempo não existem, só a unidade existe. O movimento é uma ilusão, gerada pelo avanço da luz (consciência) sobre a sombra (desconhecido).

6 – Zenão de Eléia – Foi discípulo de Parmênides. Para confirmar as teorias do mestre elabora APORIAS (caminhos sem saída, paradoxos, impasses) para demonstrar que o movimento não existe. A mais conhecida é a aporia da corrida de Aquiles contra uma tartaruga. Ele diz que onde quer que um esteja com relação ao outro, jamais um superará o outro, posto que para percorrer determinada distância, terá antes de percorrer a metade do percurso, depois ¼, 1/16 e assim por diante até o infinito. Como o espaço entre um ponto e outro possui infinitas subdivisões, é impossível que o movimento exista. Dessa forma, ele acredita ter demonstrado que o movimento é uma ilusão.

7 – Heráclito de Éfeso – Defende o entendimento de que a única realidade possível é o MOVIMENTO do mundo material. O movimento é a lei, a regra, que rege tudo que ocorre no mundo dos sentidos. Ele pensa no FOGO como elemento primordial, pois o considera como elemento sutil capaz de fazer com que as coisas se movimentem. A guerra (conflito dos opostos) é pai de todas as coisas. O universo é a superação inteligente dos conflitos, é harmonia. Dizia: “os que velam (estão despertos) percebem a unidade, os que dormem voltam para a separatividade.

8 – Empédocles de Agrigento – O princípio seria composto por 4 elementos: água, ar, terra, fogo. Nenhum deles seria mais importante que os demais. Cada coisa seria definida de acordo com a proporção em que cada um dos quatro estivesse presente em sua composição. Dizia não pretender alcançar a verdade absoluta, mas a que fosse proporcional à dimensão humana. Buscou a conciliação entre os sentidos e a razão. Sob essa ótica, o universo seria o resultado da mistura dos diferentes elementos em quantidades diferentes. A reunião e a separação se dariam através do amor e do ódio, forças em ação no movimento cósmico formador de tudo o que existe. O amor agiria na reunião e harmonização dos elementos, e o ódio os colocaria em desacordo, e esse processo seria interminável, ora predominando uma força, ora outra.

domingo, 3 de abril de 2011

Molambo somos nós (ou "A moral é uma prisão")


MOLAMBO (Jaime Florence/Augusto Mesquita)

"Eu sei que vocês vão dizer
Que era tudo mentira, que não pode ser
Que depois de tudo o que ela me fez
Eu jamais deveria aceitá-la outra vez
Pensei que assim procedendo
Me exponho ao desprezo de todos vocês
Lamento, mas fiquem sabendo
Que ela voltou e comigo ficou
Ficou pra matar a saudade
A tremenda saudade que não me deixou
Que não me deu sossego um momento sequer
Desde o dia em que ela me abandonou
Ficou pra impedir que a loucura
Fizesse de mim um molambo qualquer
Ficou desta vez para sempre
Se Deus quiser..."

Composta em 1953, “Molambo” é um clássico da MPB. Cauby Peixoto, Ney Matogrosso, Elizeth Cardoso, Maria Betânia, dentre outros, a interpretaram. Os autores – Jaime Florence e Augusto Mesquita – sintetizaram, com esta música, as questões fundamentais da ética no mundo ocidental. Devemos, como seres morais, nos filiar aos preceitos absolutos e “verdadeiros” de uma ética essencialista e metafísica; ou, ao revés, regular a nossa conduta por princípios que fortaleçam a nossa existência como seres individuais e sensíveis?

Não há dúvida que a nossa cultura privilegiou o modelo ético de inspiração metafísica. Esta ética - que tem como grandes representantes Aristóteles, Kant, etc. – é baseada na noção de verdade. Existe um comportamento ideal, por isso verdadeiro, inferido pela razão que se impõe como imperativo ao sujeito. O pensamento constrói o sujeito moral.

Desde os verdes anos somos introduzidos no mundo moral por uma educação que nos “ensina” o que é o bem e o mal; o justo e o injusto; o certo e o errado, etc., como noções absolutas. Uma vez internalizados esses preceitos funcionam como dogmas. Não conseguimos desobedecê-los impunemente. A expressão do nosso ser (pensamento, ação, valorização e sentimento) inexoravelmente se vincula a esse corpo moral pré-concebido. A nossa conduta se forma como resultado de um perfeito ajustamento a essas normas.

No ocidente, a difusão desse modelo ético não se deve apenas aos filósofos, mas à Igreja Cristã que o propagou com o apoio do Império Romano. A religião conseguiu aquilo que era (e ainda é) improvável para a filosofia: chegar às camadas mais humildes da sociedade. Institui-se assim uma moral onde o ideal de conduta está fora do sujeito que age. A ação deve seguir os cânones postos por Deus ou pela razão humana. Essas instâncias normatizadoras instituem o ideal de comportamento humano.

“Molambo” descreve com maestria – só os artistas são capazes – a dificuldade que temos para nos libertar dos valores supra-humanos. Esta música foi feita numa época (década de 50 do séc. passado) em que era inimaginável o homem deixar de lado a honra e o orgulho para perdoar um ato de infidelidade feminina. Ainda hoje esse procedimento não é comum. O peso de ser “corno manso” não é algo digerível para qualquer mortal.

Mas, por trás das idéias que nos prendem e nos petrificam ante a vida está o sujeito, com os seus desejos e inquietações. Na música, a personagem – eu lírico - supera as amarras da cultura e, contra tudo e todos, aceita de volta a mulher amada que, por motivo desconhecido, cometeu algum deslize. Ele a perdoou para satisfazer uma necessidade “vital“. Essa conduta, para muitos, o torna fraco e desprezível por estar atrelada às paixões e apelos do corpo.

Ora, se não nos deixarmos contaminar por essa maneira de pensar o fenômeno moral, podemos – nos apoiando em filósofos como Maquiavel e Nietzsche – dizer que o “eu lírico” da canção não agiu com fraqueza e inferioridade, mas, rigorosamente, o contrário. Ele procedeu com liberdade. Livre dos conceitos que, sem permissão, se impõe como inquestionáveis.

Nós, ao revés, sofremos calados. Quantas vezes tivemos a vontade de voltar atrás de uma decisão, mas, para não parecermos fracos ante os valores que julgamos superiores, não o fazemos? As idéias e os valores se impõem a nós. Agarramos-nos a eles para justificar as nossas impossibilidades. Ignoramos o que nos apraz enquanto seres sensíveis e individuais para louvarmos meras abstrações. Enquanto isso os nossos desejos, pulsões e inclinações ficam em segundo plano. A moral metafísica nos torna fraco com relação a nós mesmos.

Para a personagem da música o desejo de superar a malfazeja saudade justificou as suas ações, mesmo exposto a toda sorte de críticas. Os valores não o determinaram, mas a vontade de viver uma nova paixão... uma nova experiência (“enquanto Deus quiser...”).

Afinal, quem, de fato, é o verdadeiro molambo. A personagem da música que supera os condicionamentos que a cultura lhe impõe e, simplesmente, vive; ou nós que nos privamos da vida em razão de valores metafísicos?

Digo apenas que a moral é um artifício humano, destinado a atender um propósito eminentemente humano. Quando nos faz empacar e negar a vida, ela nega a si própria e nos desumaniza. Não sei se os compositores, ao criarem a obra, pensaram nessa possibilidade de interpretação, mas acho que concordariam: molambos somos nós!